DESFOLHA OUTONAL
É junho no sul. As quedas de folhas de muitas árvores lembram que todas as histórias passam por términos. E estes preparam novos começos, transformações. Pois no caminho do verão para o inverno aparecem muitas colheitas; frutos que alimentam e celebram outras vidas. Uma breve ópera de um dos segredos da existência: partidas permitem chegadas. Mais do que curandeiro e professor, o tempo é o carrasco e é a parteira. De tudo e de todos.
Tudo isso é cantado pelos zéfiros outonais, ano após ano. Em melodias renovadas, onde só o aviso é bem parecido: "fique atento e aproveite, pois logo acabará". Pode até parecer o mesmo baile, mas a música do mundo não se repete. Nem seus dançarinos.
E é num entardecer de aparência preguiçosa, tão próprio dessa estação, que o biólogo aposentado Tomás Almeida decide desprezar a secura do ar e a baixa temperatura para levar seu corpo encolhido a um passeio a pé, esperando reencontrar suas ideias agitadas e fugidias em algum canto da cidade. Elas sempre fazem isso: correm até a rua, presunçosas como o bom vinho, que pode melhorar com os anos, mas que aparece cada vez menos em mesas não compartilhadas.
- "A habilidade do vento em invadir reentrâncias, furos e descosturas nas roupas de frio é, sem dúvida, uma das constantes do universo".
O pretenso ancião brinca com a velha frase em sua mente, buscando alguns acordes suaves na nostalgia. Esse gracejo era trocado entre ele e seu mais constante amigo de faculdade, Hércules. Quando o uivo regelante dos ares se movendo ameaçava azedar a espera pelo ônibus, casacos surrados e espessos faziam seu melhor trabalho. Mas as lufadas e rajadas invadiam os trajes com facilidade. Não para vencer: para irritar. Ao menos sempre fora essa a interpretação dada por ambos.
O frisson nostálgico não se prolonga muito, logo apunhalado pelo oco reverberante dos fatos: não há mais um Hércules para rir das frases inusitadas. Nem Hércules, nem faculdade, nem ninguém, nem nada.
- "O tempo decompõe".
O homem é surpreendido por seus próprios murmúrios, citando outra velha frase do saudoso amigo. Como se sua boca tivesse adquirido vontade própria e roubado o conteúdo de seus pensamentos. E ele sabe: esse impulso, esse tique, é agora um hábito. Um daqueles que parece obra de leis invisíveis do universo, ante as quais não lhe é dada escolha senão obedecer.
Os longos dias convivendo apenas com seus próprios botões permitem certas liberdades, certos descontroles na hora de compor sua capa de homem racional. Então, dá-se ao luxo de resmungar sozinho e de falar com seres tidos como inexistentes.
Sua disposição para esses hábitos está um pouco maior nessa semana, depois de se perceber forçado a repensar os planos para o aniversário e para os próximos meses: na sua mesa, um bocado de laudos médicos contam a ele o que veio de brinde com o mérito de quase sete décadas de existência; e pedem decisões sobre o caminho a seguir: clínico ou cirúrgico. Há problemas em seu corpo. E são "apenas sérios". A escolha da medida para solucioná-los pode resultar em novos problemas, porém menores. Caso nada escolha, a situação pode evoluir de "apenas séria" para "grave". O tradicional pedágio da longevidade humana.
- Ah, Murphy! Você se diverte às minhas custas, né? Tudo bem... Vá em frente! Ria de mim! Ria muito! Tô nem aí, seu bosta!
Os anos trouxeram de volta aquela sua cisma juvenil de fantasiar sobre alguém ou alguma coisa no tecido da realidade jogando com os destinos humanos, expondo-os a situações ridículas e improváveis por puro entretenimento. E por causa das piadinhas notórias, ouvidas ao longo da existência. sobre a Lei de Murphy, batiza assim a suposta e infernal entidade acusada de atazanar seus dias.
Mesmo reputando-a como imaginária e pueril, vociferar contra essa mania costuma ter efeito terapêutico, permitindo minimizar a frustração através da tola galhofa aplicada a si mesmo e aos acontecimentos. Assim, seus pensamentos fluem novamente, ainda que para o incerto campo da saudade. Pois lá está o tema do dia: seu amigo ausente e tudo o que partiu junto com ele. Tudo e todos. Em especial um certo "todo".
Hércules, no final da vida, nem conseguia mais ser tão próximo. Vinha acompanhado de muitos problemas, ficando ainda mais fechado. Um de seus trabalhos o levara para longe. Quando voltou para a região, dois casamentos encerrados, três injustiças corporativas e quatro doenças crônicas compunham sua nova sombra, na qual já não cabiam as mesmas risadas leves do passado.
Não viraram desafetos. Mas suas trilhas ficaram com poucas esquinas em comum. Encontravam-se uma vez por quinzena, ou ao menos por mês, em volta de uma mesa. Isso poderia ser em bares ou nos salões de festa de seus condomínios, quando buscavam esquecer as marcas da passagem do tempo e visitar o mundo do ontem. Nem sempre a conversa fluía ou parecia natural. Mas ambos se esforçavam, como se aquele fosse o único elo ainda não rompido nos convívios. Uma ilha conhecida num oceano de coisas naufragadas. Evitavam, diplomáticos, assuntos emissários do abismo gerado pelo tempo em suas trilhas. Sobretudo os que traziam para o mesmo ponto agudo de cizânias históricas: Dolores. A professora Dolores.
Houve, com menor constância, um ou outro programa diferente praticado pela dupla, sempre por iniciativa do Tomás. Na maior parte das vezes, o cinema: buscavam a primeira exibição da tarde entre segunda e sexta, sempre de olho nas salas com promoção no ingresso pelo horário de baixo movimento. Até apelidaram tais sessões de "hora do velhinho feliz", pois aposentados cinéfilos, ávidos por poupar moedas, são encontrados nelas com frequência. Faziam isso apenas para filmes considerados imperdíveis para a sala escura e a tela grande.
Numa dessas ocasiões, em 2019, Hércules fora sozinho, sem convidar o velho parceiro. E justo numa produção que ambos ansiavam muito por ver: “Shazam”, o herói favorito de suas infâncias. Divergiram sobre o dia. Tomás, ou Tom (como era chamado por Dolores), suspeitou até da discordância ser deliberada: talvez o teimoso amigo não quisesse companhia naquela semana. Aliás, até hoje ainda considera essa hipótese.
Nunca saberá a resposta. O velho parceiro jamais retornou daquele programa. Apenas um corpo frio, flagrado no final do dia pelo funcionário do cinema, saiu de lá direto para o IML. Laudo final: inconclusivo. Tomás Almeida sempre acreditou haver algo mais, como se o amigo soubesse que iria partir e o quisesse fazer sozinho, na companhia de seu grande ídolo dos quadrinhos. Mas os profissionais legistas e os entes queridos não quiseram radicalizar na autópsia. Conformaram-se com a clássica tese da parada cardíaca; afinal seus problemas de saúde seriam compatíveis com tal desfecho.
- Fácil dizer isso! Em todos os mortos o coração para de bater, né...
A frase sai ácida e em tom acima do pretendido, chamando a atenção de uma transeunte. Ela o olha como quem examina criaturas de laboratório com falhas motoras. Envergonhado, mal consegue murmurar algo e se afasta.
Mas o que teria sido isso? Mero acidente reflexivo ou estaria perdendo algum controle cognitivo? Perguntas desconfortáveis decidem persegui-lo, como de hábito nos últimos meses. Mesmo com sua obstinação em ser um bom fugitivo.
Porém, Tom não saiu de casa nesta tarde para isso. Murphy e sua gangue que se danem! Nada de reflexões mortificantes sobre seu próprio declínio hoje! Numa esquina de seu bairro, o oásis favorito aparece para resgatá-lo do deserto de inquietações: uma cafeteria. Sem hesitar, recupera o garbo, entra, escolhe uma mesa e chama a atendente.
- Boa tarde! Posso ajudá-lo? - Diz uma garota com uniforme do estabelecimento.
Ele corre os olhos para o crachá da moça, pois faz questão de chamar as pessoas por seus nomes quando consegue sabê-los. Há um breve engasgo pela ironia despertada com a leitura. Mas sua voz já se reapresenta, serena e dissimulada:
- Boa tarde... Dolores... Gostaria de um café preto, sem açúcar.
- Expresso ou coado?
- Expresso. Em xícara média.
- Perfeito. Algo para acompanhar?
- Vocês têm alguma coisa salgada, pequena e não frita?
- Temos sim. Empadinhas, pães de queijo e rosquinhas de parmesão.
- Uma rosca, então. Obrigado!
Embora no fundo curiosa com a reação do cliente, a jovem sai serena para providenciar o pedido. Se olhasse para trás agora, talvez ficasse ainda mais intrigada, pois o candidato a septuagenário acaba de oscilar suas cores faciais, do pálido ao vermelho.
Dolores... o nome a não ser mencionado perante Hércules. O "você-sabe-quem" presente na história dos dois, trazendo neblinas à amizade. Neblinas, vendavais, e até uma geada. O mito inatingível nos tempos adolescentes. A musa veterana secundarista, reinante em suas fantasias, nos púberes tempos do colégio.
Enquanto o termo "inatingível" vigorou para ambos, a existência da moça até os uniu: havia mais um assunto para ocupar suas tardes. Contudo, mesmo não sendo como o tal "Murphy" dos seus murmúrios insólitos, o destino soube agir com igual requinte de deboche. As Dolores imaginária e real ressurgiram como uma só nos tempos de faculdade, na pele de professora de ambos. Pele, aroma, voz, inteligência, bom humor e olhares. Muitos olhares.
Foi quando Tomás virou Tom. E Hércules tentou virar Herc. Aquela atmosfera de "amizade demandando mais temperos" entre os três, salpicada pelo fantasma da disputa, conservara-se em banho-maria quase pelo curso inteiro. Quase: a orientação de TCC da graduação acabaria por desequilibrar o jogo, rompendo a já insustentável barreira da cautela. Pode não ser fácil concluir em favor de quem. Mas é presumível afirmar ter sido em desfavor de todos.
Tom e o "quase-Herc" não conseguiram ser sinceros um com o outro sobre o que havia ocorrido para cada um nos encontros com Dolores. Não em palavras. Mas os olhos, o rubor e os longos silêncios falavam com clareza suficiente.
Nunca se tratara de ciúme carnal. Mas do medo da comparação de sentimentos e da conclusão sobre quem fora mais amado.
Não foi fácil tampouco para ela. Na formatura, optou por sair após a cerimônia, evitando estar em qualquer celebração. Uma semana após a diplomação, a professora e orientadora mudou-se para Santa Catarina e foi trabalhar noutra instituição.
Pouco tempo depois, Tomás receberia uma carta, oriunda de Blumenau, com endereço de remetente mencionando a FURB. Mas jamais a abriria, motivado por mágoa, remorso e medo. Mágoa porque sua musa proibida sequer se despedira. Remorso porque no fundo achava que sua presença no triângulo desfavorecera Hércules. E medo de descobrir, nas palavras da própria mulher, que a situação fora exatamente o oposto. Pelos mesmos motivos, jamais tentara saber se outra carta fora parar nas mãos do amigo.
Com a saída de Hércules de Curitiba, anos depois, Tom acabou silenciando para si mesmo sobre essa história tão própria para livros, agindo como o guardião leal de um perigoso segredo. Comporta-se até hoje como se tudo estivesse sepultado; como se a lembrança daquele toque, outrora tão fantasiado, não mais o acendesse feito árvore de Natal. E, mesmo não tendo vivido mais nenhum grande amor ou gerado filhos em romances breves, finge ser pouco afetado pela cicatriz restante. Uma novela condenada a não ter capítulo final. Ou ao menos é como acredita.
O café e a rosquinha chegam, trazidos pela garçonete do nome que o deixa engasgado. Ele agradece e se serve, afastando, por ora, os pensamentos sobre Hércules e a musa da discórdia, bem como as inquietações sobre seus descuidos, distrações e esquecimentos, cada vez mais frequentes.
Mas o momento de degustação está fadado a não ter tanto êxito assim quanto a desligar-se dos seus últimos incômodos sobre as ironias do tempo. Quando a moça da cafeteria traz a conta, começa um novo e pequeno drama no dia de Tomás: bolso após bolso, sua mão vai constatando um inesperado vazio. Não há dinheiro, nem cartão. O rubor volta a seu rosto; e a lembrança de seu xingamento ao tal "Murphy" aquece suas têmporas antes mesmo da vermelhidão.
- Moça... eu juro, não é de propósito! Mas, pelo jeito, esqueci ou perdi minha carteira.
Encabulado com a situação, um lado seu até fica com vontade de rir, pois a frase parece tirada de uma comédia americana.
A jovem Dolores sorri de forma ambígua, algo entre a empatia e a compaixão.
- O senhor fique tranquilo... Moro com meu avô e sei como é. Isso acontece.
A gentileza da garçonete deveria deixá-lo confortável. Deveria, mas não o faz. Ela disse "avô". E "isso acontece".
- Tomás, Tomás... Já passou da hora de entender e aceitar: você tá "véio", meu "véio"...
O resmungo sai em volume audível. De novo. Ele ameaça ficar sem jeito, mas a garçonete o tranquiliza.
- Está tudo bem, senhor... Isso...
- ... "acontece"... é, eu sei... quer dizer, estou aprendendo...
Tocada pelo esforço do cliente em soar bem humorado e disfarçar o breve ímpeto de autopiedade, a jovem atendente procura mudar o foco da conversa.
- O senhor está com o seu celular? Utiliza aplicativo do seu banco?
A expressão de Tom demonstra ainda buscar entender o objetivo da pergunta, enquanto afasta sua mente e suas emoções da lembrança do recente constrangimento. A garçonete faz menção de explicar, mas é interrompida pelo cliente.
- Por favor, não...ainda não. Agradeço sua boa intenção. Mas precisa me deixar pensar primeiro.
Meio sem jeito, ela silencia e sorri. Em seguida, o homem fala com firmeza:
- Sim, tenho o aplicativo do banco. Se me ajudar com os dados de vocês, posso transferir o valor.
Um sorriso de satisfação poderia ser notado nos olhos do quase septuagenário, se alguém os estivesse fitando agora. Sua postura à mesa até melhora, fazendo-o parecer mais alto.
- Hã... PIX o senhor não usa, né?
- Não tenho ainda uma chave, mas se me informar a de vocês, acredito conseguir fazer o pagamento.
Sorridente, Dolores apresenta os dados para crédito e o valor da despesa. Tudo se conclui e ele sai do estabelecimento, rumo à sua casa. Decide buscar seus cartões, documentos e o dinheiro, para depois prosseguir com sua caminhada reflexiva.
A repentina recuperação do autocontrole e a presença da sagacidade o fazem desfrutar de um momento em que seu dia não oscila entre a disposição para falas mordazes ou os surtos de autocomiseração.
Quando chega em seu prédio, é cumprimentado pelo zelador Flávio. Este se aproxima meio sem jeito, enquanto estende a mão com um molho de chaves preso a um chaveiro bem conhecido: o seu.
- Boa tarde, "seu" Tomás. Elas estavam penduradas na sua porta, pelo lado externo. Achei melhor guardar até encontrá-lo.
Sentindo um tapa assombrado em sua testa, Tom mantém o garbo, sorri e agradece a presteza de Flávio. Quando chega dentro de seu apartamento, empalidece e sua frio, perplexo, pensando em tantas coisas ocorrendo em seu momento da vida. Acelera até o quarto para confirmar se cartões e documentos estão lá. Respira aliviado quando os vê sobre um móvel.
Seu alívio, contudo, abre espaço para um umedecer dos olhos. As águas salgadas pedem permissão para sair, sugerindo novo momento de lamentação. Pensa nos problemas de saúde recém-descobertos e nos recentes lapsos de sua mente. E se pergunta se terminará como tantos outros, com a história à sua volta e o mundo construído desfazendo-se anônima e lentamente até os fantasmas da decomposição e do esquecimento vencerem.
Por outro lado, olha para as muitas alegrias tidas na vida. Em sua infância. Nos bons tempos com o grande amigo. Nas pessoas ajudadas. Nas conquistas e construções compartilhadas. No fetiche tornado em romance. Na fantasia de tantos adolescentes que, no seu caso, foi real. Nas muitas histórias protagonizadas.
Também lembra do aprendido sobre os ciclos da natureza e do quanto compreendeu disso em sua profissão. Sobre as estações e como elas espelham a dinâmica da vida. E como a existência se renova. Os fins trazem novos começos.
Lembra da expressão de abertura usada em seu TCC: "A graça da vida está no que acontece nos trajetos; não na chegada, nem na partida. Aproveite como puder; não com moderação, mas com sabedoria."
Tomás Almeida, biólogo aposentado e morador do bairro Juvevê de Curitiba, olha para dentro de si, para o dia vivenciado. Reflete sobre o que as memórias e os lapsos estão tentando lhe dizer. E sente com intensidade seu próprio relógio. Talvez pela primeira vez, sem subterfúgios.
Em breve o outono começará a se transmutar para a próxima estação. As coisas mudarão de novo. E haverá o inverno. Ou melhor: os invernos. Em breve; não agora.
Tom se pergunta o que fazer. O que fazer mesmo, de fato, de verdade, para valer a pena. Para valer o tempo restante do trajeto.
É quando nota saber essa resposta. Sempre soube. Nunca ignorou, nem esqueceu. Só escolheu arquivar, deixar guardada. Como se não lhe coubesse.
O vento invade as frestas das janelas, trazendo sussurros antigos. Ele os escuta e concorda. A decisão é tomada. Mesmo podendo não dar certo, ele irá fazer. Os planos do dia mudam um pouco.
Vai para sua escrivaninha e, na primeira gaveta, encontra uma velha e amarelada pasta. Retira de seu interior um envelope nunca aberto. Rasga sua lateral com cautela e, por fim, lê o bilhete da ex-professora. Encontra um número de telefone com DDD 47 e um recado bem direto: " Oi, Tom. Se puder, em algum momento da vida, perdoe-me. As coisas saíram do controle. Sei que machuquei ambos. Também me feri. Vocês têm uma amizade maravilhosa! E não merecem que nada fique em seu caminho. Se um dia quiser saber mais, ligue para o número do começo deste bilhete. Mas mesmo que nunca o faça, acredite ao menos numa coisa: eu te amei muito! E ainda amo. Dolores."
Como uma árvore fora da estação certa, a seiva de sua alma ferve pujante. Um baú de emoções rompe-se dentro de seu estômago. Por breves segundos, o estudante beijando sua orientadora sobre os livros faz-se presente. E ele sente seu coração bater, sem tal emoção parecer uma agressão ao finado amigo.
Após um rápido, mas eterno momento olhando para o nada cheio de tudo, digita o número de linha fixa presente no velho bilhete. A gravação da operadora confirma que aquele contato telefônico já não existe. Sem desistir de seu ímpeto, volta-se para o antigo computador e o liga. Em seguida, navega no Facebook e no Instagram, em busca de um nome. E encontra: Dolores Freitag. Mas ao invés de um, aparecem três. O primeiro perfil é descartado pela idade. Para os outros dois, precisa comparar imagens. Mas já se foram muitos anos. Conseguirá perceber, por trás das marcas do tempo, quem é ela?
Por fim, a encontra. Há poucos destaques para rostos na parte acessível a quem ainda não foi "adicionado". Mas são suficientes para ele perceber: ainda se encanta com os inconfundíveis olhos, o sorriso, os traços do rosto. Ela está morando em São Francisco do Sul. Aposentada. E viúva.
- Viúva...? Mas isso não quer dizer "sozinha"... Já passou tanto tempo. - Murmura, convicto do terrível erro de não ter aberto antes o envelope.
Misturam-se emoções: alegrias e esperanças, de um lado; arrependimento e medo, por outro. Ela o amara. Mas ele fora insensível e equivocado com seu último apelo.
Tom não sabe no que seu próximo passo resultará. Nem mesmo se resultará. Mas decide mandar um pedido de amizade pelo aplicativo.
Após confirmar o envio, respira fundo. E parece sair do transe. Ri de si mesmo pelo novo ato ingênuo de adolescente sonhador. Também percebe a burrice de se omitir no passado. Dessa vez nem foi preciso seu imaginário Murphy. Ele mesmo criou uma armadilha para si, lascando para sempre uma das trilhas de sua história. Sem dúvida, sua mensagem merece total silêncio como resposta. Ou talvez um retumbante "vá à merda"!
Mesmo assim, tantas emoções num mesmo dia, incluindo a bombástica confissão da carta, o fazem entender: precisa tomar umas e outras; merece, na verdade. Num bar perto de seu prédio, claro, para não correr o risco de errar ou esquecer o caminho na volta. E só depois de comer algo mais consistente, ou seu aparelho digestivo haverá de garantir ao terrível Murphy uma divertida e patética madrugada.
Pega seus documentos e cartões, assegura-se de as chaves estarem em seu poder. Então sai em direção ao agradável Café Galeria Portfólio, confiante de não esquecer nada dessa vez. E está quase certo. Quase, pois não desliga o computador e nem fecha o canal de rede social.
Uma hora após sair, o Facebook mostrará seu pedido como aceito. Uma hora e vinte minutos depois, chegará uma mensagem para ele, começando mais ou menos assim:
- "Olá! Tom? Que coisa impressionante! Nesta semana peguei-me lembrando muito de você. E aí, do nada, vem esse pedido seu. Depois de tantos anos de total silêncio..."
Haverá outras coisas escritas. Mas ele só saberá disso quando voltar de seu passeio etílico. E precisará ver como fará depois, para tratar de cada ponto a ser lido.
Talvez vá ser bem mais complicado do que ele possa presumir. Talvez, não. De qualquer forma, restará tempo para descobrir. Antes da ampulheta de sua história ficar vazia, Tomás Almeida decide tomar em suas próprias mãos a areia restante.
Afinal, o outono ainda não está concluído.