Sombras por entre longos dedos
Sombras por entre longos dedos
Magnus Langbecker
Mais um café. Logo outro.
Nesta tarde não tocou no telefone. Celular descarregado. Tentando não tirar os olhos da mesma página do mesmo bendito processo interno que nem sabe do que trata. Importante desligar. Tentar um fio. Forças que não vê mais. A distância dos filhos. A separação. Sete dias de mais uma semana passando quase somente com café e rapadura. A menina da limpeza lhe pedira se vivia a base de alface. Pobrezinha. O verde lhe esquece. No ouro e nas notas também. Dispender aquilo que não tem de dar custas a ninguém. Quebra sozinha e arranca-se de perspectivas.
Larga a pasta do processo disfarce e tenta se concentrar no ofício que lhe encomendaram. O diretor tentando justificar o inútil de estar aí ocupando toda uma sala. Tudo relativamente fácil mas atrapalha-se mesmo nos formatos pré-prontos. Se veem que estou algo no a ser feito não me procuram para maiores consolos e orientações. É isso. Ajeita o relatório. Mas, encontra algo para refazer, também não pode dar tudo por finalizado. Senão vem mais. Na metade da manhã sai para os fundos do prédio. A alegria dos motoristas e do pessoal da limpeza e cozinha lhe traz algo bom. Um arrefecimento. Toma café e desfia lamentos. Histórias da sempre mesma rotina. Pergunta pelo senhor que vende rapaduras. Todos sabem que é a sua melhor freguesa. Tem dias que esse é o único alimento que toca.
O sujeito não vem hoje. Volta para sua toca. Sua mente desliza desejos de sua intimidade a tanto intocada. A filha adolescente lhe liga recomendando comer um sanduíche deixado pronto e avisando que saí antes dela chegar. Passará em casa de colega finalizar um trabalho escolar e após irá diretamente ao Colégio público onde cursa o ensino médio noturno. Sabe das vozes de corredor: "Sorte que tem a filha. Tem juízo e a cuida." Não reage. Não vê resposta e nem necessidade. Não tem visto nenhuma necessidade ultimamente.
No ônibus para casa tenta se abstrair do restante dos passageiros. Apesar desta predisposição um jovem colega acaba sentando a seu lado e consegue alguma conversação. Moços jovens lhe atraem muito. Na imaginação voa longos trechos e desenrola conversação e convencimento sobre a imberbe presa até convencê-lo a lhe acompanhar até sua morada. Desce só.
Encontra alguém que lhe recorda conhecer. Também jovem. Porém este lhe acompanha. Conversa disparatada e algum álcool. Aceita e á acompanha. Seu apartamento de BNH surge com seu entulhamento e desorganização a qual tenta dar uma visão de modalidade alternativa. O moço se mostra bem a vontade. Come seu sanduíche. Bebe uma cerveja. Destilado.
- Como chama isso dona?
- Gim. Termina logo e vem comigo.
O dona não lhe causa mais o amortecimento de antigamente. Hoje aceita tudo asceticamente.
Praticamente arrasta o jovem ao quarto. Estranha até a pouca resistência. Também a ausência de necessária recompensa financeira.
Completas intimidades adormece sob um amargor de incompletude ou fome. Defumava o quarto estranho aroma daquilo que traga o raparigo.
Acorda sozinha. Difícil manter os olhos abertos. Chega ao banheiro tentando não tropeçar. As coisas mais desarrumadas que o normal. Abre o chuveiro ao máximo e tenta não pensar.
Levou algum dinheiro, poucas joias que encontrou e um aparelho de som. Por sorte o quarto da filha, ilha, fechado a chave. A desordem salvou as joias mais caras. Não usa de verdade a anos. As vezes algo discreto no trabalho. Acessos de vômito. Vai na sacada e a tontura lhe faz dobrar para fora da janela. Vertigens e algo além lhe impelem para a queda. Contraria de último momento e se joga de volta para dentro do apartamento. Corpo e ossos doloridos. Fecha a porta. Limpa o chão e volta ao quarto.
No criado mudo uma carteira. Poucos trocados, moedas e uma carteira de identidade. Foto bem desatualizada de adolescente.
Esconde rapidamente na gaveta. Sua filha iria exigir registro policial.
Telefone toca.
- Veio bem no final do expediente. Nem deu tempo de lhe avisar. Sua aposentadoria por motivo de saúde.
- Vânia! Você está me ouvindo?
Deixa cair o fone de lado e desaba no pequeno sofá. Nem a dureza da lombada dos catálogos que lá estavam lhe desperta movimento. Sabia e encaminhara. Mas não lhe ocorria como planejamento real. Isso significa um fim. Um corte definitivo. Haveria rotina? Ou conceder-lhe-iam a benção total do alheamento e distanciamento?
Faz um chá que abandona na pequena mesa de centro. Bebe água gelada.
- Que houve mamãe? Ainda acordada? Esta desordem toda?
- Nada minha bebê, nada! Talvez eu me case. Tenho muito a organizar. Mas o cansaço é tão grande.
A jovem lhe olha com desalento e pega a caixa de medicamentos. Comprimidos, cápsulas e um copo de água. A cama e o sono. Se não fosse essa menina. Não a deixa perder os horários dos medicamentos nem o norte dos olhos.
Aos poucos lhe abraça sonolência. Mesmo agitado Morpheu ainda lhe acolhe.
Existirá amanhã. A vida sempre parece valer a batalha.
Sonhos são tão gratificantes.