O FINAL INFELIZ
“Saímos das trevas e entramos nas trevas.Entre estes dois instantes há coisas vividas mas nós não vivemos nem o começo nem o fim, nem o nascimento nem a morte: não têm carácter subjetivo, como acontecimentos pertencem inteiramente à esfera do objectivo”
Thomas Mann in ”Montanha Mágica”
João Paulo engatou a primeira e perorou com interesse:
- E a diconisa, a Irmã Berta, na verdade Alfreda Schildnecht com o seu cordão do pince-nez atrás da orelha dizia para Joachim Ziemssen, agonizante, com um descaramento e crueldade inauditos que na verdade nunca tinha sonhado que haveria de ser chamada para cuidar de um deles, ele ou o primo Hans, até à morte.
Leonor do outro lado da linha ripostou:
- A mulher era sádica!
- E dizia literalmente:”Tome”e deitava água-de-colónia num lenço e aproximava-o do nariz do moribundo”Goze mais um pouco da vida, tenente”
Patético mas ao mesmo tempo lindo, não acha lindo?
- Ai bossinho, muito! – troçava Leonor ironicamente – Esse Thomas Mann tinha um deleite com os grandes finais.Já na “Morte em Veneza”o Visconti seguindo à risca o livro não pôs o Dirk Bogarde a escorrer tinta preta do cabelo enquanto se esvaía em febre com a cólera que grassava em Veneza?
- É.É verdade.Na última cena!Ao som da música do Mähler, claro – confirmou João Paulo.
Nessa noite, pela noite fora, não houve mais discussões.Nem as polémicas habituais. Se a princesa Diana tinha sido mandada matar pelas altas esferas da realeza ou tudo resultara de uma perseguição dos paparazzi que acabara mal, se a Maddie fora morte por negligência e os pais eram os culpados ou raptada por um pedófilo ou se o Woody Allen tinha abusado da Dylan há décadas ou se tudo tinha sido forjado pela mente perversa e vingativa da Mia Farrow nem se eram os alienígenas os responsáveis pela chamada de vez em quando se ir abaixo.Conversas nocturnas de dois amigos de longa data. Que tinham trabalhado juntos na mesma empresa, na verdade uma espécie de espelunca e sido cúmplices e companheiros de tortura perpetuada por chefias estúpidas, mal formadas e mal escolhidas.O trivial.
Mas aquele tema era fracturante ou melhor angustiante e ela involuntariamente lembrava-se daquela manhã de verão, um ano antes da pandemia em que se pintou, pôs rimel e se maquilhou com tudo a que tinha direito, vestida para matar para participar numa reunião importante que ia ter com o Diretor essa manhã e entrou no café do Sr Lemos meia a dormir:
- Bom Dia.Preciso de um café urgente ou ainda adormeço aqui, em pé.
Mas nesse instante Ursula, uma habituée oriunda da Ucrânia e atracada há uns anos a um juiz serôdio quase a atropelou, metendo-se á frente dela e exigindo:
- Mas antes, ò Lemos, uma imperial geladinha que estou cheia de sede!
Eram sete da manhã.O calor subia pelas paredes insuportável e inesperado e Leonor fez um gesto condescendente, assentindo que concedia a sua vez àquela criatura sequiosa.
A imperial foi servida prontamente e Leonor ainda se lembra de ver a outra engolir vorazmente dois ou três goles,soltar um suspiro estranho,fazer uns movimentos pélvicos com uma ténue nota de obscenidade e ir escorregando, escorregando encostada à parede até ficar imóvel, de cócoras e olhos abertos num canto.
Por um momento o dono e os clientes presentes pasmaram com o sucedido.Depois Leonor acordou de vez e vociferou.
- Deu-lhe alguma coisa!Ela não respira!É melhor chamar a Emergência Médica.
-Ai meu Deus! – retorquiu aflito o Lemos – que a mulher morreu de morte macaca!
- Senhor Lemos, tenha calma.Faça a chamada.Vamos evacuar o café.Eu e esta senhora saímos.
Só nesse momento a Dona Margarida, uma septuagenária e beata vestusta de reacções lentas, desatou aos guinchos como um macaco, aterrorizada.
Tinha sido esse o fim de Ursula, uma mulher ainda jovem que morreu de prazer quando o coração não aguentou uma cerveja muito fria lançada de esguicho pela goela abaixo.
Para morrer bastava estar vivo.A vida, sim, tão frágil como uma vela ou com uma simples folha levada pelo vento .Quando contou o motivo do seu atraso com todos os pormenores à mesa da reunião, reparou que Jorge, o Diretor, empalidecia e quase se indispôs.
João Paulo chamou-a à realidade e ao presente, dizendo, meio a mentir:
- Pessoalmente, não tenho muito medo da morte.Mas a agonia da morte, essa, apavora-me.
Maleitas cruéis e longas que levavam anos a fazer estragos, a causar sofrimento até ao fim.Tantas doenças.O Inferno.
De facto, ele guardava ciosamente um livrinho de capa negra de apontamentos onde registava coisas do género:
“Na representação de “Longa jornada para a noite” de Eugene O’Neill no Teatro Nacional, um espectador soltou uma exclamação, urinou-se e morreu.O actor mais sénior que fazia de pai, Rogério Paulo ou Jacinto Ramos(1), já não me lembro bem, julgando talvez que se tratasse de uma mera perturbação inconveniente interrompeu a peça, agastado e convidou o morto a sair da sala para a representação poder prosseguir”
ou
“O meu psicoterapeuta depois de uma lauta refeição num restaurante de luxo arrotou ruidosamente e caiu de bruços sobre a mesa, morrendo instantaneamente e partindo a loiça da Vista Alegre com que o almoço fora servido”
ou
“Sacha,o filho do José Manuel Bastos,insigne ex presidente do IPC e o meu preferido dos amigos do meu progenitor telefonou a dizer que tinha ido a casa do pai e deparara com ele enforcado em cima da mesa da cozinha”
O que Jorge,o Diretor de Leonor não confessara nem mesmo às paredes, fora que ficara tão perturbado com a história da imperial que nesse dia fora ao massagista musculado que lhe conseguia fazer um relaxamento perfeito e que quando ele lhe perguntara talvez porque estranhasse o seu ar tão acabrunhado:
-Hoje quer com final feliz?Onera só um pouco mais o preço.
Encolheu os ombros, suspirou e respondeu:
- Pode ser.
A morte era tão natural, tão certa ou mais certa do que a vida.Morriam milhares só com a pandemia, na guerra e em particular nesta que ameaçava a Ordem Internacional com a invasão da Ucrânia, em sismos como nesse mesmo dia fatídico no Afeganistão e o preço da vida nunca fora tão desvalorizado e aviltado pelo próprio Homem.
Mas também o dos animais, dos mares, dos rios, das montanhas, da vegetação e do planeta.
João e Leonor costumavam rir os dois, trocar graças, ver o mundo pelo seu lado mais cómico e ridículo.Invocar o humor.
- Lembro-me que há muitos anos a Gisélia, uma loura oxigenada , secretária do meu patrono se saiu com esta “Preocupamo-nos tanto com a vida e ela não vale nada”.Até o digníssimo senhor professor catedrático se calou sem resposta…
Leonor, minha querida, deixei de a ouvir!
- E agora, está a ouvir-me, chefinho?
- Agora estou.Só lhe queria pedir.Vamos falar de outra coisa.
-Sim.Mas não posso deixar de lhe contar o que me aconteceu hoje.Lembra-se daquela minha amiga que trabalhava na rede, a Laurinda?O irmão dela era professor de Filosofia e tinha pavor de morrer e pediu para que quando isso acontecesse, ser cremado.O senhor finou-se e telefonaram da funerária para lhe dizer que já tinham o pote pronto para ela levar.Sabia que lhe fazia impressão e ofereci-me para a acompanhar.A loja ficava ali perto do Alto de São João e ela exigiu que dessem um corte no plástico que continha as cinzas para que elas pudessem respirar.Quando descíamos a Morais Soares, começou a chuviscar.Não sei como a Laurinda fez aquilo mas tropeçou e deixou cair o pote.As cinzas não estavam resguardadas e escorreram pelo rego junto aos passeios.Com a chuva foi tudo muito rápido e elas desapareceram num ápice na valeta.
- Credo Leonor!Parece um filme.
- E a Laurinda virou-se para mim e soluçou “O meu irmão foi pela valeta abaixo”.Eu peguei nela entrámos na primeira tasca que encontrei e encomendei as bebidas mais fortes que lá tivessem.Ainda me sinto meio embriagada.
Fiaram uns minutos em silêncio, incapazes de falar.Depois, João Paulo observou.
- Foi um final infeliz, convenhamos.Devemos sempre pedir o contrário.
(1)Na verdade, na produção a que a personagem se referia era Rogério Paulo o actor; Jacinto Ramos, o encenador.