Conto das terças-feiras – Tempestade de verão
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE – 5 de julho de 2022
Na chegada em seu novo local de moradia, procedente de São Paulo, o jovem paulistano olhava incrédulo e assustado pela janela do ônibus, e pensava: como fui trocar minha cidade natal por esse fim de mundo. É que a rodoviária, se aquilo poderia ser chamada como tal, ficava localizada na saída ou entrada, da cidade, na sua periferia. Passara 28 horas dentro de um ônibus, trafegando em estrada péssima, na parte asfaltada, só buraco, no trecho sem asfalto, estrada de barro, buraco e lama, chovera muito durante à noite daquele dia, que fazia o ônibus sacolejar de um lado para outro, às vezes quase virando Isso só não acontecia porque o motorista conhecia bem a estrada, onde estava rodando. Entre os passageiros ouviam-se “vai virar”; “segura a mão, motorista”; “e o pé também”, gritava outro, podia ser até por brincadeira. O garoto era o único que nunca fizera aquela rota e encontrava-se ali todo encolhido, na poltrona de nº 6, janela, com muito medo.
Muito atrasado, felizmente o ônibus chegou, graças a Deus, todos são e salvos. O irmão mais velho do jovem viajante, impaciente, esperava há mais de três horas naquele local. A partir daquela data iriam morar juntos, numa república de jovens rapazes, cinco até a chegada do garoto aventureiro, que trabalhavam na mesma empresa, mas em cidades vizinhas.
Os dois irmãos dirigiram-se à república, que ficava no segundo andar de um prédio, levaram as duas pequenas malas do novo inquilino, acomodaram os pertences do recém-chegado em uma cômoda, indicando a cama na qual o garoto dormiria. Depois de tudo arrumado, já passando das 9 horas da manhã, foram dadas as últimas instruções:
— Vou trabalhar e voltarei após às 18 horas. Aqui temos uma empregada, que já deve ter chegado, e faz todos os serviços da casa, até a comida. Alguns colegas podem chegar para o almoço. Descanse, ela só vai chamá-lo ao meio-dia. Fique bem, despediu-se o irmão mais velho.
Aconteceu tudo como o combinado, o garoto conheceu a empregada, almoçou e voltou a dormir. Não percebeu a chuva que se formava lá fora, caiu num sono profundo, pelo cansaço. Quando acordou já tarde da noite percebera que o irmão não voltara. Andou pela casa, não encontrando ninguém, foi ao quarto da empregada, que estava com a porta fechada. Ainda chovia muito lá fora. Bateu na porta e a moça levantou-se e, desculpando-se, falou:
— Está chovendo muito, a rua da frente está completamente alagada, não consegui ir para casa. A rádio tá informando que boa parte da cidade está com água a mais de dois metros. Estamos presos, é melhor você voltar a dormir.
Ele assim fez, sem antes conferir o ambiente externo. Realmente havia muita água, algumas pessoas deixando suas casas, outras, em locais mais elevados, tentando tirar a água que teimava em invadir as residências. Uma tristeza, pensava ele, que nunca tinha presenciado tal cena. Lá embaixo pela correnteza, passava móveis, malas, panelas e outros pertences das pessoas que haviam perdido suas casas. Ele não conseguia dormir, a empregada também, os dois ficaram ali comentando sobre a desgraça que a água estava imprimindo. Já amanhecia e o estrago era grande. Ninguém mais atravessava àquela avenida, a empregada, com toda a calma conjecturava:
— É o rio se vingando, pelo maltrato que recebe. Jogam lixo, entulho transformando-o em um grande esgoto. A cidade não tem saneamento e os políticos não se preocupam com a recuperação do rio que passa logo ali na frente. Ele já foi fonte de alimento de muitos que moram à sua beira.
O garoto, assustado, ouvia tudo calado. Estava preocupado, pois iria morar ali pelo resto de sua vida. Não tinha volta para ele, já não havia mais ninguém de sua família a esperá-lo, só o irmão que resolvera cuidar dele, prover seu sustento até encontrar um emprego, juntar dinheiro, comprar uma casa, casar e formar uma família.
Com o dia mais claro, dava-se para ver a desgraça estabelecida, a chuva parara, agora era hora de orar para não chover mais, e, aos poucos, procurar reconstruir o que foi perdido, refazer a vida, para algumas daquelas pessoas, já tão sofridas.