Cristal (conto vencedor do 33º Concurso de Contos de Araçatuba)

Cristal

Estava quase amanhecendo e as árvores corriam rápidas demais para Cristal. Nunca se acostumara com aquele movimento estranho: sentia que estava se mexendo mesmo estando parada. No início, o barulho de ronco vindo do bicho de lata a assustava, mas, com o passar do tempo, as crianças a fizeram se acostumar. O vento que entrava pela janela sempre trazia uma mistura de cheiros e odores. Cristal adorava tentar adivinhá-los ainda que alguns preferisse nem imaginar de onde vinham. Além destas sensações, sentia também cheiros distintos das próprias crianças e do pai. Naquele dia, um cheiro diferente vindo do chefe da família a assustava. Lembrou-se de farejar algo parecido com aquilo quando se despediu de sua dona.

- Papai, pra onde a gente vai? – perguntou o filho mais velho.

Silêncio. Não havia receptor, apenas um motorista indiferente. Cristal lambia os dedos do menino mais novo que tinha acabado de comer chocolate. O gosto adocicado daqueles dedos a deixava inquieta, pois sempre queria mais. Tinha o poder de mexer com aquela pequenina cabeça canina. Começou a se deliciar das memórias de quando toda a família cantarolava enquanto estavam no bicho de lata. Sua dona, sempre brincalhona, apertava-a e a enfeitava com tudo que estava à volta. Cristal parecia um bicho de pelúcia. Um badulaque.

Repentinamente, sentiu que o bicho de lata já não corria tanto. Parecia cansado. Estranhamente, ele não havia rodeado a enorme árvore pontiaguda que se erguia na entrada da cidade e nem havia parado para beber a água fedida que ficava bem perto de onde os enormes bichos de lata entravam e saíam diariamente. Ficou ponderando por um momento: era incrível como sempre havia algum lugar com uma cobra enorme que cuspia aquilo. Gostaria de brincar com ela mas, pelo fedor, logo desistia do desejo. Papai sempre dava uns papeis para um moço que se parecia muito com aquele que entregava as cartas. O moço sempre alimentava o bicho de lata. Imagine só, uma pessoa só para dar água para ele. Com uma ponta de inveja, Cristal tinha vontade de morder o moço...

Amanhecera. O bicho de lata, repentinamente, reduziu ainda mais o passo. Só poderia estar exausto. Cristal, no entanto, não entendia por que ele estava parando logo ali, no meio do nada. Longe de casa, dos odores conhecidos, da cidade que conhecia tão bem, a cadelinha inquietou-se. Só havia um pasto vazio e lamacento. Diversos odores inebriaram o apurado olfato da cadelinha. Não sabia por onde começar. Eram muitas histórias, momentos e sentimentos para enumerar em tão pouco tempo.

- Vem, Cristal! – ordenou secamente o seu dono.

- E a gente? – perguntou o filho mais novo com uma expressão desoladora.

- Vocês ficam no carro! E sem mais perguntas! – sentenciou o chefe da família.

Cristal saiu do bicho de lata confusa, pois nunca saía sem a companhia das crianças. Será que encontraria mais uma vez sua dona? Ficaria muito feliz. Iria abanar sua pequenina calda e se comportar como uma “verdadeira princesa” para a “chefa”, já que fazia tanto tempo que não a via.

O pai seguia adiante do pasto. Resmungava impropérios. Por sorte, Cristal não entendia nada daquilo. Sua leitura era feita a partir dos cheiros mesclados à tonalidade do que falavam somados ao som espaçado semelhante ao bumbo que o menino pequeno tocava em casa. Naquele momento, o cheiro, a tonalidade da voz e o bumbo que vinham do chefe não faziam sentido para Cristal. Inexplicavelmente sentiu-se estranha. Culpada.

A cadelinha e seu dono haviam caminhado uma distância suficiente para o bicho de lata ficar quase do tamanho dela. Nunca entendia como aquilo acontecia. Era só se afastar das coisas que elas ficavam menores. A grande árvore da cidade já havia desaparecido. Estava com a boca formigando. Mesmo suando pela língua, Cristal queria muito beber água. Via somente lama. Não gostava de tomar daquilo pois deixava sua língua endurecida e seca.

De repente, o chefe tirou algo das costas e, pelo odor “visível”, a cadelinha logo percebeu do que se tratava. Começou a saltitar e a latir. Sua calda se movia de um lado ao outro como um metrônomo acelerado. Era sua vasilha personalizada. O dono retirou uma pequena garrafa d’água do bolso e despejou na vasilha até transbordar. Finalmente Cristal mataria sua sede.

Apesar de sua alegria, Cristal ainda pôde notar que sua leitura do chefe não mudara em nada. Continuava austero e inflexível. Frio como aquelas pessoas que encontrou todas as vezes que visitou sua dona. Que falta ela fazia! Nunca mais a encontrou. Deve ter ficado muito longe dela. Teria ela ficado tão pequena a ponto de não mais encontrá-la?

Enquanto bebia avidamente, Cristal percebeu que o chefe tirou mais uma coisa de suas costas. Aquilo estava embrulhado em uma sacola, mas, obviamente pelo cheiro familiar, a cadelinha parou de beber e fixou bem seus olhos nas mãos do dono. Qual não foi sua surpresa em perceber que se tratava do bicho redondo!

Cristal flexionou as pastas de forma que ficasse bem preparada para pegá-lo. O chefe, sem alterar sua expressão, ergueu a mão e o arremessou com força suficiente para fazê-lo voar bem longe. Cristal só teve tempo de tentar acompanhar seu voo rasante para dar meia volta e, em disparada, perseguir o danado do bicho.

Curiosamente, aquele lugar era mais macio para correr. Muito diferente do morro onde ficavam tapetes rígidos nos quais tanta gente desfilava ou corria. Ah... como gostava de passear com sua dona e, durante o “desfile”, farejar por diversas vezes o cheiro de uma verdadeira ambrósia, conhecida também pelo nome de “pizza”. Começou a andar mais leve só de pensar naquele cheiro até que sua leveza se desfez quando sentiu que suas patas já estavam encharcadas. Mesmo assim, prosseguiu com a caçada. O bicho estava tão pequeno que ainda não conseguia vê-lo. Sabia porém, que sua leitura nunca falhava no quesito do cheiro e do som. Seguiu rumo ao som que suas “asas” haviam emitido.

Apesar de ainda não vê-lo, Cristal notou que seu conhecido cheiro tinha ficado mais intenso. Aproximou-se de forma que o odor ficasse mais forte. Ainda só via aqueles bichos que não andavam mas se moviam de acordo com o vento. “Bicho do mato”, concluía Cristal. Estariam escondendo o bicho redondo? Sentiu que uma de suas patas ficou mais molhada e fria. Recolheu-a e, ao olhar para baixo, notou que o bicho redondo a encarava.

Sem pestanejar, a cadelinha abocanhou o pequeno bicho e se preparou para entregá-lo a seu dono. Ergueu a cabeça e viu que o chefe tinha sumido. “É óbvio”, deduziu Cristal. “Fiquei muito longe dele”. Outro fato curioso, porém, chamou sua atenção: não conseguia mais rastrear o cheiro dele.

Ao longe, reconheceu um som de ronco. “Bicho de lata!” latiu. Soltou o bicho redondo, “não vai fugir”, ordenou Cristal e correu em direção ao ronco.

O som do ronco estava ficando cada vez mais fraco. Foi quando ouviu outro ronco. “Não é ele”, pensou. Um terceiro ronco irrompeu seguido do quarto e quinto.

“São muitos!”, latiu Cristal. Percebendo, todavia, que nenhum deles era o seu bicho de lata. Pensou ter ouvido choro. Seriam os meninos? E o chefe? Foi buscar a mãe? Por que a teria esquecido ali com o bicho redondo? Estariam de castigo? Seria uma brincadeira? Cristal sentou-se diante daquele tapete quente e úmido e esperou algum sinal. Um ronco. Um cheiro. Uma sensação que a ajudasse encontrar sua família. Aos poucos, notou que somente os bichos de lata enormes começaram a passar por ali. Estariam indo para a cidade? Estariam voltando...? Já não sentia os cheiros e odores da urbe...

O tempo não esperou a determinação da cadelinha. Correu a seu modo. Ditando as fases do dia. O sol, mesmo tão imponente, também obedeceu ao Cronos e se pôs ao final da tarde. Cristal, no entanto, permanecia lá. Parada. Paciente. Com a esperança de ainda encontrá-los.

“Ficaram pequenos!” A única explicação para toda aquela demora foi esta. Sem delongas, Cristal começou a andar em círculos menores e os ampliou conforme filtrava todos aqueles cheiros e sensações com a sua leitura. Mesmo à noite, servia-se de qualquer luminosidade. Pautava-se, no entanto, muito mais pela audição e olfato. De repente, um cheiro familiar. Caminhou diretamente em direção a ele e encontrou mais uma vez o bicho redondo. Imóvel. Sem o som do bumbo que só as pessoas tinham.

Sentiu sede novamente. Voltou para sua vasilha e descobriu que já havia bebido toda a água. “Ficaram pequenos demais” pensou enquanto voltava para diante do tapete, agora frio.

O sentimento de culpa voltou. O que ela teria feito para ficar de castigo tanto tempo? Depois que sua dona se foi tudo havia mudado. Os cheiros e sons já não eram os mesmos de sempre. Foi culpa dela tudo aquilo? Primeiro sua dona. Depois o resto da família.

Precisava ser uma “boa dama” e se comportar. Voltou para perto do tapete gélido. Sentiu frio. Um frio diferente. Era um sentimento similar quando os meninos iam para a escola e o pai ia trabalhar. Como estariam os meninos àquela hora? E o mais novo? Quem iria protegê-lo do escuro? Lamber seus dedos e fazê-lo rir? Falhara com a dona e, agora, com ele também. Ah... como queria, naquele instante, estar rodeada de pessoas na praça perto lar dos enorme bichos de lata, lambendo o resto de rapadura que o menino mais velho sempre separava para ela. Toda semana, havia um dia certo para irem lá... vários bichos de lata menores, com duas ou 4 patas rodeavam o lugar, cada um trazendo um pouco das doces delícias...

Precisava voltar a fazer sua leitura. Abocanhou a vasilha de água e retornou ao bicho redondo. Notou que, em ambos, ainda havia o cheiro do chefe. Fraco, mas o suficiente para não esquecê-lo. Era provável que ele estaria preocupado com ela. Porque não conseguia encontrá-lo? Ficaria bravo com ela e a amarraria à coleira como costumeiramente o fazia. “Tudo bem”, desde que os faça felizes mais uma vez, ponderou Cristal.

Os bichos do mato, juntamente com o vento frio do pasto lamacento envolveram a cadelinha e o bicho redondo. Cristal estava cansada, sonolenta e preocupada em como encontrar sua família. Precisavam dela. Quem iria guardar a casa? Avistar um gato intruso e mantê-lo longe dos meninos? Fazer companhia para o seu dono quando bebia tanta água fedida a ponto de adormecer na cadeira...

Cristal adormecera.

Um ronco diferente despertou a cadelinha. Não conseguia distinguir de onde vinha. Sabia apenas que bastou para acordá-la. Deu-se conta de onde estava ao perceber a presença do bicho redondo entre suas patas úmidas. Mais uma vez o ronco a assustou a ponto de fazê-la se levantar. Estava débil e caminhava lentamente. O ronco a perseguia onde quer que andasse. Foi para perto do tapete. Onde os bichos de lata passavam.

Antes de se aproximar do tapete, ouviu o ronco mais uma vez. Soltou o bicho redondo e mirou-o. É provável que foi ele. Nunca havia feito aquilo antes. Afastou-se dele e foi para o centro do tapete que já estava quente novamente.

O ronco perturbou-a novamente. Em sua ingenuidade não percebera que aquele estranho som vinha de seu estômago. Estava faminta. Antes que pudesse notar, um bicho de lata desconhecido veio a toda velocidade em sua direção. O tempo de reação não foi o suficiente para deixa-lo passar.

Escuro. Trevas. Dor. Formigas perambulando suas pequenas pernas.

Cristal tinha sido atropelada.

O lapso de tempo não acompanhou sua dor. Estava anoitecendo novamente. Tão rápido assim? Precisava encontrar sua família. Ficaram muito pequenos para ela. Porque foi se distanciar tanto deles? Não conseguiria ir muito longe naquele estado. Se pelo menos avistasse a grande árvore da cidade ou então visse o enorme arranha-céu laranja...

Arrastou-se o suficiente para abocanhar o bicho redondo que assistia a tudo indiferente. Ouviu um estrondo que, apesar de conhecido, causou calafrios em seu pequeno corpo. Sua calda estava recolhida e já não tinha forças para se mover. Sua calda, antes prestíssima, encontrava-se em uma pausa musical.

Começou a chover.

Cristal não tinha como correr. Não havia abrigo. Estava só. Sentia que era culpada por aquilo, pois não fizera sua família feliz. Não mereceria nem a cidade, suas delícias, cheiros ou lembranças.

Os dispersos pingos d’água anunciavam uma tempestade iminente. Precisava proteger seu último membro: o bicho redondo. Sabia que ele só emitia som quando estava voando e que não tinha o bumbo. Seu cheiro, porém, era a única lembrança de sua família.

A cadelinha encolheu-se o máximo que pôde para proteger seu derradeiro irmão. Sua determinação, mesmo abalada, não se dissolvera com aquela água em abundância. Jamais se afastaria dele.

Novamente, o Cronos, a seu modo inexorável, ordenou que a chuva parasse. As nuvens, que andavam em bando, foram embora uma a uma. O entardecer se desenhou. Cumpriria sua breve função antes da noite tomar seu posto.

O ronco oriundo do estômago da cadelinha também cumpriria sua função. Cristal mal conseguia abrir seus olhos. Nunca havia se sentido assim. Sua determinação finalmente desmoronou quando cheirou o bicho redondo e não encontrou mais sua última lembrança.

Os roncos dos bichos de lata retornaram. Não conseguia, no entanto, levantar-se para vê-los.

Amanhecera.

Cristal estava com a visão confusa. Todos os bichos do mato que sempre balançavam de um lado ao outro estavam agora borrados. Seu apurado olfato também já não era o mesmo. Sentia um cheiro só. Aquele cheiro... Reconhecera-o. Era o cheiro da despedida de sua dona acamada. A cadelinha, no entanto, não tinha mais ninguém para se despedir. Estava só. Não foi capaz de encontrar sua família. Afastou-se demais dela. Fechou os olhos e deu mais um urro de dor.

“Um bumbo?”, questionou-se. Só poderia ser um sonho. Como poderia sonhar se estava prestes a sumir também?

“Algo se aproxima”. Precisava salvar o bicho redondo. Abocanhou-o. A água da chuva foi capaz de levar seu cheiro, porém Cristal se lembrava de tudo. Não o abandonaria por nada. Seria leal até o fim.

Sentiu uma mão em sua cabeça. Rosnou silenciosamente. “Não vão tirá-lo de mim porque ele é minha família”, bradou tacitamente Cristal.

Com muita dificuldade abriu os olhos. Uma enorme silhueta negra ofuscou sua visão. Conseguiu notar que o cheiro era muito diferente. O bumbo daquela pessoa a acalmava. A tonalidade da voz dava-lhe paz.

Não poderia, porém, abandonar sua família. Queria muito encontrá-los. Protegê-los. Amá-los mesmo quando não merecessem porque, para ela, era quando mais precisavam.

As mãos que a tocavam carinhosamente também a levantaram com cuidado.

Ouviu um novo ronco. Era provável ser um bicho de lata pequeno. Aquele com uma pata atrás e outra na frente. Havia outro bumbo. Havia outra pessoa. Cheirou novamente e reconheceu outro cheiro. Era um cheiro que há muito não o sentia. Uma simbiose de emoções que já a havia envolvido inúmeras vezes. Lembrou-se de quando os meninos chegavam da escola e brincavam com ela. De quando sua dona a colocava no colo e lhe fazia um cafuné. De quando seu dono a levava para passear com os meninos. De quando gesticulavam e emitiam para ela uma tonalidade engraçada que apenas os bebês possuem. Era como se as formigas que estavam em suas pernas resolvessem perambular dentro de seu estômago... Ou seriam borboletas?... Seria amor? Teria outra chance de fazer outra família feliz? “Não posso fracassar de novo”, disparou sua consciência.

Pelo fato de estar tão debilitada, mal pôde sentir o ronco do bicho de lata de duas patas. Tudo o que podia ouvir eram aqueles bumbos que remetiam algo familiar. Não sentia mais o bicho redondo pois estava inebriada pelo calor daqueles desconhecidos.

- Cristal... – disse o desconhecido ao ler o nome gravado na vasilha.

A cadelinha, ao notar aquela tonalidade tão familiar, quase sem força, latiu e, mais uma vez, abanou sua calda. Seu metrônomo indicava “allegretto”.

Os raios de sol dissiparam as nuvens derradeiras da manhã. Ao longe, erguiam-se os arranha-céus. A árvore pontiaguda, anfitriã da urbe, dava as boas vindas para os cinco: o casal, o bicho de lata, o bicho redondo e Cristal. Os cheiros e odores penetraram o aguçado olfato da cadelinha e a acolheram novamente. Havia sido aceita mais uma vez. O som dos enormes bichos de lata seguiam como de costume. A praça, rodeada por mais bichos de lata menores, fervilhava de gente. Cristal lambia as mãos que a seguravam. Mãos adocicadas de amor.

Templário das Letras

Alexandre Mazarin
Enviado por Alexandre Mazarin em 04/07/2022
Reeditado em 05/07/2022
Código do texto: T7551989
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