CONTOS DE OUTONO/INVERNO. O RETORNO DE DAVI.
Alice desceu da Kombi. A madrugada fria. O vento gelado cortando os ossos. -"Estão alí." Indicou Amarildo, o fundador e coordenador da ONG Mãos Que Aquecem. Tudo começou em 1989, quando Amarildo perdeu o pai. Ele resolveu ajudar moradores de rua na época do inverno. -"Muita gente morre de frio em São Paulo, precisamos fazer alguma coisa." Disse Amarildo a época. Reuniu líderes da comunidade, pastores de igrejas evangélicas e vereadores. A Kombi foi uma doação da guarda municipal. Amarildo conseguiu um barracão de escola de samba, onde poderia fazer a sopa, auxiliado por meia dúzia de voluntários. Cobertores e agasalhos doados. O projeto foi crescendo e ganhando adeptos. Alice achava tudo aquilo uma tremenda perda de tempo. -"Isso é assistencialismo. Tem política por trás. Usam os pobres moradores de rua pra se promoverem." Dizia a mulher. Amarildo tentou um cargo de vereador mas não teve êxito. Ganhou votos no bairro apenas, onde era mais conhecido. -"Uma pena pois, como edil, teria mais chance de ajudar os pobres." Repetia Amarildo, desolado. Davi, de onze anos, voltava da escola. Uma quinta feira. Um desconhecido num carro. Passeio no zoológico, sorvete e um tênis. O garoto entrou no carro, seduzido pelos mimos. Alice se desesperou pois Davi não apareceu em casa. A noite caiu. Ela e o esposo foram a escola. Nenhum sinal do garoto. A polícia. O boletim de ocorrência. Alice refez o caminho da escola pra casa. Conversou com muitas pessoas. Nenhuma novidade. Dias. Semanas se passaram. As fotos de Davi nos postes. Fotos nos jornais. O garoto tinha desaparecido por encanto. Um aluno tinha se lembrado de ter visto um garoto entrar num opala amarelo. Era uma pista. -"Me lembro vagamente. O garoto magrelo entrou num opala amarelo, na rua 9 de Julho. Na saída das aulas da tarde." Carlinhos, de outra série e dois anos mais velho que Davi, deu seu depoimento ao delegado, na época. As investigações da polícia concentraram -se no Opala amarelo. Tudo em vão. A via crucis de Alice, a procura de Davi, já durava sete anos. Uma via dolorosa que passava por cemitérios, institutos médicos legais, orfanatos, praças com concentração de moradores de rua, albergues. Reportagem de tevê sobre o drama de Alice. Alice tinha esperança que seu filho estava vivo. O quarto do filho conservado. Os brinquedos. As roupas. O drama uniu Alice e Amarildo. O líder comunitário ofereceu ajuda a mulher,
agora viúva, comovido com o drama dela. -"Davi deve ter uns vinte e poucos anos. Se estiver vivo." Disse Nicolau, esposo de Alice, antes de fechar os olhos para sempre. Alice passou a fazer trabalho voluntário na ONG de Amarildo, para passar o tempo, ajudar o próximo e preencher o vazio no seu coração. A companhia e amizade de outros voluntários lhe fez bem. Seu círculo de amizades cresceu. Alice era outra pessoa. A distribuição de sopa e agasalhos nas madrugadas. O olhar agradecido dos moradores de rua não tinha preço. Três anos depois. Alice retomou os estudos. Tinha um emprego numa imobiliária. Tinha um novo companheiro até. Nicanor também trabalhava na ONG. Vida nova, vida que segue, ela repetia como lema. Ela desceu da Kombi. A madrugada fria. O vento gelado cortando os ossos, como já disse lá no início do conto. Os olhos de Alice fixos nos moradores de rua da capital paulista. Um grupo de oito moradores de rua. A escadaria da igreja. Luvas, meias, gorros distribuídos. O rapaz sorriu. Alice sentiu uma pontada no coração. O moço de vinte e poucos anos era idêntico ao seu Davi. Ernesto segurou a mulher. -"Alice? Tudo bem?" Ela estava sem voz. Tinha feito algumas simulações no computador, de como Davi estaria, após tanto tempo desaparecido. Aquele rapaz, era como ela sempre imaginou que o filho seria, adulto. -"Agradeça, Davi." Disse o mendigo mais velho. O rapaz sorriu. -"Obrigado, dona. Deus abençoe." O rapaz também se chamava Davi. Alice não conseguia tirar os olhos daquele rapaz. Amarildo assistia a cena de longe, comovido. Ele e Alice levantaram a ficha do rapaz. Origem desconhecida, pais desconhecidos. Tinha morado em Mauá, alguma passagem por Sorocaba, Americana e Santa Barbara dOeste, no interior. Fazia correntes e colares com pedrarias, trabalhando com artigos hippies. -"É ele. Davi sempre gostou de pedras. Colecionava pedrinhas e pulseiras." Amarildo a desencorajou. -"Pode ser. É muita coincidência mas vamos devagar, Alice." A mulher fez contato e amizade com Davi. O rapaz fez alguns trabalhos de jardinagem na casa de Alice. -"Venha ver o quarto de meu filho." O rapaz entrou no quarto do filho desaparecido de Alice. -"Me lembro vagamente. É triste." Disse ele. Entre sucos e pastéis, ela contou a ele toda a história do filho. Aquela casa, os pertences do garoto, não trouxeram quase nenhuma emoção no rapaz. -"A senhora sofre até hoje." Foi só o que disse. -"Cem reais da jardinagem." Ele estendeu a mão, tirando ela de seus devaneios. -"Ah. Vou pegar, querido." Davi sumiu por meses. Alice e Amarildo o reencontraram na Cracolândia. Era uma cópia mal feita daquele jovem que eles conheceram antes. Alice o levou pra sua casa. O companheiro a apoiou. O jovem aceitou internação e tratamento químico. Davi passou a morar com Alice. Reservado e introspectivo, Davi não queria estudar ou trabalhar. Gostava de ler. -"Ele não é seu filho. Alice, acorda." Amarildo disse o que a mulher não queria ver e isso cortou a relação deles. Alice deixou a ONG. Só tinha olhos pra Davi. Nem se importava com alguns eletrodomésticos que sumiam, como por encanto, de sua residência. Nicanor a deixou, cansado da situação. Alice pediu um abraço e Davi recusou. -"Está bem. Se você está aqui, estou feliz." Davi e alguns colegas, aproveitando a ausência de Alice, roubaram a casa e desapareceram. Amarildo soube e procurou Nicanor. Eles foram a polícia. Moradores de rua disseram a Amarildo que Davi tinha ido pra outro estado, Rondônia talvez. -"Aquele doido sempre falava de Rondônia, se foi embora é pra lá que foi. Deve ter vindo de lá pois gostava de peixes, coisas da floresta. Essas coisas." Disse Raul a Amarildo. Raul conhecia Davi muito bem. Amarildo e Nicanor decidiram omitir tal fato a Alice. Era provável que fosse atrás do suposto filho. Nicanor se reaproximou de Alice. Ela precisava dele. Ele sentia falta dela. Os anos passando. Alice e Nicanor conversavam muito. -"Aquele rapaz não era seu Davi. Ele reconheceria os brinquedos, o quarto, a comida da mãe. Ele foi a escola e não demonstrou nenhuma emoção. Ele não a abraçava, Alice." A mulher chorando, admitindo que criara uma ilusão. -"Era muito parecido. Mesmo nome." Nicanor fechou a Bíblia. -"Quem garante que ele se chamava Davi de verdade? Será que ele não sabia de sua história, antes de lhe conhecer?" Seis anos depois. Um carro da televisão estacionou em frente a sede da ONG. Amarildo se assustou. -"Procuramos Alice da Cruz." A repórter e o camera-man. Um outro carro, do qual desceu um casal e um rapaz. Amarildo notou que eram estrangeiros. Soube pela repórter que aquele casal inglês tinha adotado uma criança brasileira. O rapaz queria saber sua origem, conhecer os pais e o lugar onde cresceu. Amarildo cumprimentou o casal e o filho deles. -"Samuel Jones Smith." Era o nome daquele jovem, de terno azul marinho. -"Na verdade, eles compraram a criança. Abafa o caso, senhor Amarildo. O rapaz foi raptado no Brasil e adotado na Inglaterra. Agora, sabedor de sua origem e vendo o caso da senhora Alice pela tevê e internet, acha que ele é o tal Davi." Cochichou a repórter. Amarildo não se ofereceu para levá-los até a casa de Alice. -"Me lembrar que chamava Davi. Alice e Lalau. Meus pais." Disse o inglês com sotaque estranho. -"Alice mora em outro bairro. Outra casa. Vou ligar para o Nicanor. " Alice e Nicanor chegaram a sede da ONG, tempo depois. A reportagem. A repórter explicando a situação a Alice e Nicanor. Samuel e os pais entraram na sala. Alice estava em prantos. -"Davi?" O rapaz correu e a abraçou. Amarildo e os demais comovidos. -"Ninguém chamava o Nicolau de Lalau. Só você." Disse Alice ao filho. Os pais adotivos de Davi/Samuel se uniram ao abraço. -"Vai ter que ir a Inglaterra, mamãe. Vai gostar." Alice, abraçada ao filho, olhou para Amarildo. -"Só se eu puder levar um amigo." Amarildo ficou sem jeito. -"Não sabia que ainda era considerado seu amigo. Nunca disse que sonhava conhecer a Inglaterra. " Alice o conhecia bem. Amarildo era obsecado pela cultura inglesa, amava os Beatles e o Liverpool. Falava inglês fluente. " Alice abriu os braços. -"Obrigada, Amarildo. Sempre foi um ótimo amigo." Davi/Samuel passou uma semana com Alice. Ele se comoveu ao visitar a escola. Alice já tinha doado as roupas e brinquedos do filho. Tinha um álbum de fotos apenas. Ela fez macarrão com almôndegas, prato preferido do filho, quando criança, antes de sua viagem de volta a Europa. FIM