MASSARANDUBA

MASSARANDUBA

BETO MACHADO

Heitor e Elisa se casaram seis meses depois da formatura dele no curso de oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Ele, um jovem promissor na carreira militar, realizava seu segundo sonho num espaço de tempo inferior a um ano.

Heitor Gomes Varela, filho único de uma família de classe média, oriunda do interior do estado de Minas Gerais, instalada há mais de trinta anos na Pedra de Guaratiba, bairro preferido dos artistas plásticos, dos músicos, dos atores para se refugiarem do estresse, num pedaço de litoral carioca ainda desconhecido por muitos. Ele tinha uma idéia fixa de embalar nos braços um filho homem. Sonhava, repetidas noites, que Deus lhe houvera presenteado com essa dádiva. Mas, na real, esse sonho ainda estava por vir.

Heitor cresceu num ambiente de pescadores, onde o bucolismo da Natureza, ainda hoje, embala uma sarada geração de “play boys” de peles curtidas pelo sol e pelas águas salgadas Guaratibanas. O fato de ser filho único o impelia a ultrapassar alguns limites ligados à disciplina social que a maioria dos seus amigos não se atrevia praticar. Por sorte, rompeu os anos da adolescência sem graves arranhões que viessem manchar sua folha corrida com alguma ocorrência ou registros policiais.

Com o corpo avantajado desde o fim da infância, ficou conhecido como “Fim de Baile”. Era temido até pelos amigos, na praia e nos clubes.

Depois de ser reprovado em vários vestibulares, seu pai pagou um curso preparatório para oficiais do Exército. Nada... Tiro n’água. Mas alguns conhecimentos adquiridos nesse curso o ajudaram a passar no concurso para oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Finalmente Heitor iria conviver num ambiente onde aprenderia limites e disciplina.

Foi na sua formatura de oficial da polícia que Heitor e Elisa se conheceram. Foi um namoro relâmpago. Tudo do jeitinho que Heitor gostava, antes de fazer o curso de adaptação.

No curso Heitor aprendeu que “tudo tem seu tempo certo”. “O bom soldado não se atrasa nem se apressa”.

Mas antes dessa conquista de Heitor os anos corriam muito lentamente, como as águas do Rio Piraquê. Rio que Heitor conhece muito bem, desde sua primeira infância quando pegava barrigudinhos e mandis com uma peneira.

Agora o tempo é mais ligeiro. E o tenente Varela sente a necessidade de expandir seu raio de ação, assim como suas atividades paralelas à da segurança pública.

Um colega burocrata, do seu batalhão, puxou um assunto que lhe chamou a atenção: “um capitão de outro quartel anda a caça de um sub ou de um tenente que queira compor o grupo GETAR. Grupo Especial de tráfico de Armas”.

Onde é que nós chegamos, minha gente!... É inacreditável. Mas conversas desse calibre são corriqueiras nas salas de oficiais. Mas Varela ainda se sentia um “Pato Novo” nessa lagoa cheia de jacarés. Ele precisava sondar mais alguma coisa, antes de pisar, de vez, nessa “areia movediça”.

Noutro bate papo o tenente burocrata soube de um cabo do seu próprio batalhão que compunha o GETAR. A letra R é pra não confundir com outros órgãos da corporação. Ou sim.

Varela não demorou para descobrir que era o cabo Ventura, quem poderia lhe dar as melhores informações sobre o grupo.

A conversa com o subalterno foi num bar próximo ao batalhão; ambos à paisana e a conversa regada a cerveja. O cabo não negou a participação.

___ Sabe como é, tenente. O soldo de cabo só dá pra comprar a ração do cachorro.

___ Verdade. Mas o de tenente também não é muito diferente, não, cabo.

___ To ciente. Mas, por favor, aqui no bar eu sou só Ventura.

___ Sem problemas. É a força do hábito. Mas voltando ao assunto, você acha que o risco é proporcional ao retorno financeiro ou não?

___ É muito mais que proporcional, tenente. Só não pode ter deslumbramento, exibição, porque se sujar... Ponto final. Se o tenente tiver interessado, eu mando uma mensagem codificada pro coronel e ele te liga.

___ Coronel? Eu soube que é um capitão que resolve o ingresso de novos membros.

___ Procede... Se você conversar com outro membro daqui a meia hora, ele vai te dizer outra patente... Faz parte.

___ Obrigado.

___ Aguarda a ligação, tenente.

Heitor chega em casa não escondendo a apreensão por aguardar aquela ligação que poderia aprovar ou reprovar seu ingresso no GETAR.

Elisa capta com facilidade o estado de espírito do marido e demonstra interesse em saber o porquê daquilo.

___ Posso saber o quê de negativo está a ocorrer com o meu gatão?

___ Claro que sim. Você sabe que eu não dou um miado, se quer, sem participar à minha amada mulher.

___ Vixi!!! Que romântico!!!

___ Sempre fui.

___ Sim. Mas não me enrola. O que ta ocorrendo?

___ Tem duas coisas que estão encasquetando a minha cuca.

___ Pois conta. Faça-me tua confidente.

Elisa fala ao marido lhe fazendo carícias no rosto e massageando-lhe a nuca e os ombros.

Heitor vê-se totalmente desarmado e sem a mínima condição de mentir.

___ Um fato é coisa da profissão. Só se resolve lá. É coisa de polícia. A outra coisa, sim, tem a ver com a gente.

___ Fala.

___ É sobre esse tratamento que você vem fazendo pró fertilização.

___ E daí?

___ Isso pode te prejudicar no futuro... Ficar mexendo no teu organismo não é legal.

___ Acha que devo parar?

___ Sim... Que tal a gente adotar um menino?

___ Pode ser.

___ Essa é uma resposta muito vaga.

___ Pois bem. Vou parar o tratamento e vamos procurar uma instituição de confiança para iniciarmos o processo de adoção.

Heitor arregalou os olhos que brilhavam como um farol de milha, tomou nos braços a esposa ponderada e a levantou como quem pega nos braços uma criança e dá a ela o dengo merecido.

Ali começava a gestação, sem coito, de Miguel, o filho de Heitor e de Elisa. Mais uma conquista; uma realização do sonho antigo e desejo obsessivo de Heitor Varela.

Os primeiros anos da vida de Miguel foram só de xodó, carinhos, dengos e paparicos. Heitor não podia ouvir um espirro do menino que parava tudo que estivesse fazendo para conferir o quê estava acontecendo. Todos os mimos possíveis, Miguel recebia, tanto do pai quanto da mãe.

Hoje, passados dezessete anos, Miguel já é um braço do pai na “arte do trabalho paralelo”. Há um ano Miguel é responsável pelo dinheiro arrecadado da “contribuição voluntária” dos comerciantes e dos condomínios, pela segurança particular. Desde que Miguel assumiu essa função, tomando conta das finanças da “firma”, o bolo só cresceu. E esse “super ávit” lhe rendeu um carro zero, cujos documentos estão em nome do pai. Qualquer problema ou ocorrência policial no trânsito é “galho fraco”. Em todas as “blitzen” o resultado é o mesmo.

___ Vai embora, moleque.

___ Vai liberar porquê, soldado?

___ É filho do Tenente Varela.

___ Aprendeu direitinho, heim, soldado?

___ Positivo... Se o mestre é bom, o aluno aprende rápido.

Mas Miguel é tranqüilo. Dirige automóvel desde os treze anos. Nunca sofreu nem provocou acidentes.

Com a morte do coronel Castro, criador do GETAR, houve uma disputa para ver quem assumiria a cabeça do grupo. Tenente Varela venceu com folga. A explicação dos que votaram nele é que seu espírito expansionista o coloca à frente dos outros. Nem a alegação dos perdedores, dizendo que ele era um simples tenente não vingou. Foi uma vitória maiúscula sobre seus superiores. Até porque o grupo é civil e a hierarquia dos grupos investidos de poder paralelo e “otras cozitas más” têm outra natureza. Nem militar nem civil . A propósito, Varela conduz muito bem um diálogo com parceiros latino americanos. O que os fez prestigiados com esse novo comandante do GETAR.

Parceiros da Colômbia, Bolívia e Paraguai comemoraram a vitória de Varela. Eles adoram o seu PORTUNHOL.

Um dia após sua assunção ao cargo máximo do grupo, Varela recebe uma ligação do Paraguai.

___ Carga pronta para despacho.

___ Enviarei o “way”.

___ Ok. Aguardo.

Quando os paraguaios mandam esse comunicado é porque a carga ainda está em solo deles. Só aguardando a rota a ser traçada.

Expertise maior que a do cabo Ventura para elaboração de rota não há no grupo. – Destino final: Rocinha—Rio de Janeiro. Apenas quem estiver de folga poderá integrar a comitiva de recepção da carga: cinqüenta fuzis e mais trinta caixas de munição. Cabo Ventura conhece a Rocinha como a palma da própria mão.

Cabo Ventura coloca sua turma de amigos da alfândega de sobre aviso, no aeroporto internacional Tom Jobin: carga paraguaia... Destino: Rocinha... De imediato, Ventura comunica-se com Varela.

Varela arma uma operação de Guerra. E o “dono” da favela é avisado para providenciar a logística do galpão onde ficará trancado o veículo. Devem ser desobstruídas todas as ruas por onde vai passar a carga. Os soldados do tráfico viram “guardas de trânsito”. Proíbem estacionar próximo às esquinas para facilitar as manobras do veículo.

O motorista do baú liga Pro Varela. Diz que ta chegando. Varela passa a notícia para Ventura. Esse transmite para os demais. Todos a postos. Varela retorna pro caminhoneiro perguntando sobre cores. Esse responde em inglês. – Blue – Varela passa a cor da cabine do caminhão para o cabo Ventura e esse repassa para a tropa, dizendo: “tudo azul”; “céu de brigadeiro”. Agora é só aguardar.

Varela adentra ao restaurante que ilustra a entrada da favela da Rocinha. É um belo casarão de estilo colonial, com paredes e portas de vidros escurecidos, contrastando com o restante do visual, ruas acima. Seu instinto policial o leva a se sentar de frente pra rua, de forma a observar tudo que ocorre do lado de fora.

A prefeitura está fazendo um afago no emocional da comunidade, recapeando ruas e corrigindo problemas de saneamento básico. Muitas máquinas produzindo um barulho infernal. Percebem-se muitos trabalhadores mal remunerados, ostentando, nos uniformes, logo tipos e cores que identificam as obras municipais. Os funcionários estatutários recebem vales refeição e almoçam nesse restaurante que já está com o salão quase totalmente cheio. Aos terceirizados resta o recurso do “farol de Jeep” grudado na tampa da marmita. Em todo ano eleitoral os moradores são obrigados a comerem essa gororoba. É evidente que isso é fruto do voto obrigatório. Fazer o quê? Ta na Lei.

Por uns instantes o tenente se sente mais Heitor do que Varela. Queria sua Elisa ali, pertinho dele. Trocando palavras e beijinhos; e ela pedindo o seu sorvete de morango que ele não pode nem provar. Seu metabolismo é avesso a morango. Aquele gigante também tem suas fragilidades. Súbito, sente saudade do filho e da mulher. Então, liga pro filho.

___ Oi, filho, ta onde?

___ Oi, pai, to em casa. Terminando minha planilha da semana.

___ Beleza... Eu to na Rocinha.

___ Naquele restaurante?

___ Sim. Como você sabe?

___ Suposição... Posso ir aí?

___ Não. Nem pensar. Hoje é osso. É coisa pesada... E sua mãe?

___ Ta lá nas escritas dela. Ela tomou gosto por escrever... Dei uma olhadinha escondido e li o título: MASSARANDUBA... O que é isso?

___ É uma espécie de madeira de lei. Muito usada nas construções civis.

___ Ah, ta... Tchau, pai.

___Tchau, filho.

A conversa com Miguel foi tão agradável que Heitor nem viu o salão do restaurante encher.

O motorista caminhoneiro liga de novo.

___ Dois minutos. Quatro batedores. Dois e dois. Frente e verso do papel.

De repente um barulho ensurdecedor de coisas se quebrando, misturado com uma gritaria de pedidos de socorro que se juntam ao silencio do tenente Varela.

___ Alô... Alô... – Varela não responde mais. O quê teria acontecido? – se pergunta, mentalmente, o motorista do caminhão.

A priori o operador do rolo compactador de asfalto teria deixado a máquina desligada, numa rua íngreme, sem ter acionado o freio de segurança, originando a maior tragédia acontecida naquela comunidade. O rolo compressor desceu desgovernado, subiu a calçada, entrou no salão do restaurante, derrubando colunas e vigas de maçaranduba que serviam de suporte ao telhado colonial do casarão. Uma das vigas de madeira caiu sobre o corpo de Heitor Varela que veio a óbito de imediato.

O cabo Ventura, rapidamente, providencia a remoção do corpo do companheiro de trabalho para o H. Miguel Couto, no Leblon e depois assume a operação que se encerra com total êxito, o que possibilitou a tropa se envolver com o socorro das vítimas com ferimentos leves. E as gravemente feridas receberam atendimento ali mesmo, pelos médicos das ambulâncias que chegavam a todo momento.

Com o silêncio de Varela, o motorista do caminhão de cabine azul, com a preciosa carga liga para a “sede” do grupo GETAR. Depois de alguns minutos recebe as informações da tragédia e também o contato do cabo Ventura, substituto provisório do falecido Tenente Varela, naquela complicada operação, até a chegada do capitão Duran no local da entrega do “material”.

___ O capitão estará no local dentro de vinte minutos.

O “céu de brigadeiro” também estima esse tempo para chegar à entrada da Rocinha, contando com os transtornos das interdições por conta dos atendimentos aos feridos, vítimas do desastre.

Antes mesmo de o cabo Ventura receber a ligação do caminhoneiro, a “sede” já havia se comunicado com ele.

___ Pega a agenda do tenente Varela e segue, à risca, o que está escrito. Ele era muito minucioso nas suas ações. O capitão Duran não demora, vai chegar aí. Passa tudo pra ele e reassume teu posto.

___ Positivo... Vou atender o “céu de brigadeiro”... Ta me ligando.

___ Ok.

Ventura atende ao telefone com a nítida impressão de já estar avistando o caminhão de cabine azul.

___ Pronto. Cabo Ventura.

___ Entrando no espaço destino.

___ Pode prosseguir... Já está sob minha visão. Vou te acenar da guarita de ônibus. Daqui até o final ta tudo aberto pra ti... Vou te seguindo... Honda prata. Siga o Wase e vamos nos falando.

O motorista segue as ordens do cabo Ventura. Estacionadas na rua indicada pelo Wase, apenas ambulâncias dos Bombeiros e algumas particulares. Há muitos pedestres transitando pelas ruas para satisfazerem suas curiosidades e volúpias de fotografar o rolo compressor sob escombros do restaurante destroçado.

Zé do Rolo, orientado pela namorada, saiu, ladeira acima, na direção da Estrada da Gávea para chegar até a seção onde é lotado, relatar o caso e solicitar ajuda jurídica.

O Honda Cívic prata, vidros pretos blindados, mantém a distância de, aproximadamente, cinqüenta metros do caminhão de cabine azul. O galpão onde ficará trancado o caminhão se localiza na próxima rua à direita, segundo o Wase. O Honda prata liga a seta à direita e o caminhoneiro observa pelo retrovisor e entra. Há uma aglomeração no portão do galpão. São elementos de confiança do cabo Ventura. Trabalham ali desde a inauguração do galpão. Conhecem cada pedacinho daquele recinto, para eles, sagrado.

Os dois andares subterrâneos do prédio de quatro pavimentos erguidos nos fundos do terreno que ostenta um belo galpão coberto com telhas de zinco, continua sendo uma incógnita até mesmo para os antigos moradores daquela rua, testemunhas vivas daquela construção desde a fundação até a sua inauguração. Muitos ainda lembram que os operários faziam parte de um sistema de rodízio de mão de obra, não observado em outras construções. Ninguém permanecia além de uma semana na obra. Toda segunda feira observava-se uma fila, pela manhã, composta por convocados via telefone ou SMS. Apenas os que concordavam com o contrato escrito e assinavam é que iniciavam o trabalho no mesmo dia. A remuneração era muito atraente. Uma espécie de super valorização do salário acima do piso determinado pelo sindicato das categorias profissionais envolvidas.

Os curiosos da Rocinha até hoje tentam decifrar um fenômeno que alguns moradores da parte alta da favela já haviam detectado: sempre que algum caminhão entra no galpão durante o dia, desaparece à noite como que por encanto, sem sair pelo portão.

___ Aquele galpão é mal assombrado.

___ Isso deve ser “coisa do Bicho Ruim”. Aquele povo que freqüenta ali não é de Deus não.

___ Fala assim não, seu Zé.

___ Que Deus me perdoe. Isso é o que eu penso.

Durante muitos anos esse tipo de diálogos era recorrente na região. Hoje os comentários se arrefeceram. As novas gerações nem se importam com as entradas e saídas de caminhões daquele galpão, muito menos com o desaparecimento deles, à noite.

Um sistema de elevador invisível, projetado para suportar muitas toneladas tanto para descer quanto para subir, funciona com a perfeição de um relógio suíço. O disfarce no piso do galpão para ocultar o maquinário do elevador pode se classificar com uma peça de arte. Apenas quatro motoristas estão aptos a colocar qualquer caminhão nas marcas certas, de modo a não comprometer o equilíbrio do elevador.

O Honda prata estaciona atrás do caminhão de cabine azul. Ventura sai do carro e vai até a cabine azul do caminhão e pede para o motorista sair. Precisam conversar sobre aquela operação.

___ Piloto, você ta de parabéns... Belo trabalho. Pelo visto você ainda não almoçou, certo?

___ Certo. Obrigado pelo reconhecimento do meu trabalho.

___ Não precisa agradecer.

___ Mas eu sou agradecido.

___ Bem... O capitão Duran ta vindo aí também. Ele é o cara que fala mais alto do que todos nós juntos. É o “bufunfa’s man”. Acho que já me fiz entender, né? Essa galera aí vai colocar o caminhão dentro do galpão, assim que a gente, ou seja, nós três formos almoçar lá no Leblon. Quando retornarmos eles já terão descarregado e guardado tudo em seu devido lugar.

Com a chegada do capitão Duran a turma do Ventura inicia sua tarefa de descarregar e armazenar o “material”, enquanto os três vão almoçar.

A interação é amistosa e animada desde a saída. Ventura pergunta ao motorista se ele já escolheu em que carro quer ir ao restaurante. O tom da pergunta é um tanto jocoso. O motorista percebeu e respondeu no mesmo tom.

___ Vixe, seu moço... E caminhoneiro tem lá alguma preferência pra andar de carona em carro de passeio?

___ Bom... Então vem comigo.

___ Aquele Alfa Romeo do capitão deve ser muito caro pra transportar um caminhoneiro de trecho, assim como eu.

___ Não se subestime. Qualquer um de nós tem condição de ser agraciado pela sorte, um dia, e comprar um carro igual.

___ Só com muita sorte mesmo.

___ Você conhece a zona sul do Rio de Janeiro?

___ Um pouco.

___ O Leblon é o bairro mais emblemático da zona sul. Lugar da burguesia carioca. Reza a lenda que ali surgiram os primeiros “play boys” em solo brasileiro. O Rio de Janeiro ainda era capital do Brasil, nessa época.

___ E essa coisa se espalhou em todo Brasil. Até nas periferias e nas comunidades tem esses “mininos”, tirando onda com os mais velhos. É nas estradas; é nos engarrafamentos das cidades grandes, tem esses “cabra” “metido a besta”, perturbando a vida de quem quer trabalhar direito no trânsito.

Ventura percebe que seu plano deu certo.

___ Piloto, ainda não sei seu nome.

___ Benjamim. Os amigos me chamam de Benja.

___ Prefiro Benja. Os cariocas gostam de abreviar tudo.

___ Já percebi isso.

___ Olha só, Benja, já chegamos... Rapidinho.

O Alfa Romeo do capitão Duran estacionou na frente e o Honda Cívic do Cabo Ventura atrás. O restaurante ostenta um luxo na fachada que chega ofuscar os olhos de Benjamim que não pára de pensar no caminhão de cabine azul, trancado num galpão lá na rocinha.

Os três saem dos carros quase simultaneamente. Ventura avista, numa posição estratégica, um segurança, figura conhecida do grupo; é um ex policial.

Enquanto o capitão Duran se apresenta ao Benjamim, Ventura vai ao segurança checar a “barra”. Segundo Cardoso Ta tudo beleza.

___ Tudo certo, capitão.

___ Marquem um tempinho de três minutos aqui que eu vou entrar pra localizar o “homem”.

Apenas o capitão Duran tem os detalhes para identificar o representante paraguaio, dentro do restaurante. O reconhecimento foi imediato. Antes que a porta automática se fechasse, às costas do capitão, ele já havia identificado o negociador latino americano.

Os quatro homens almoçaram, conversaram amenidades e segredos que deverão permanecer na mente de cada um até seus últimos dias de vida.

Alguns anos se passaram e a vida na Rocinha continua a mesma. Nada de novo.

Quanto a Elisa, viúva do tenente Varela é, hoje, uma grande escritora, premiada e respeitada nos meios literários e nas mídias. Comprou um apartamento em Laranjeiras com o dinheiro ganho com a venda dos direitos autorais do livro “Best seller” que escreveu quando o marido ainda estava vivo. Aquele que o filho bisbilhotou o nome: MASSARANDUBA. A estória vai virar filme.

Seu filho Miguel formou-se em ciências contábeis e comanda um grande escritório de contabilidade no centro da cidade do Rio de Janeiro. E, como sua mãe, tem tudo para ser bafejado pelo sucesso, nessa nova carreira; e que siga pelo caminho legal, sepultando, definitivamente, o modus operandis utilizado no passado recente. Desde que não se agarre a nenhum simulacro moral na sua trajetória, depois de se despir do “fardão” que lhe foi presenteado pelo pai, falecido, tragicamente, numa operação clandestina e criminosa na Rocinha.

Este narrador está firme na torcida para que Miguel dê bom trato à sua índole e, se possível, um pouco mais de atenção às necessidades e orientações do seu espírito, mesmo sem se enclausurar nos porões das doutrinas religiosas. Deus é o limite. Deus deve ser o destino das pretensões humanas.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 15/06/2022
Código do texto: T7538347
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