Uma pequena vitória e uma grande surpresa
A xícara pareceu vibrar em minhas mãos enquanto eu lutava internamente com meu instinto para não lançar todo aquele café escaldante em cima da cara empapuçada do seu Silva, chefe do escritório. Enquanto ele, com o dedo em riste, cuspia em minha cara números fantasiosos e me explicava com minúcia como eu “não fiz o meu trabalho”, limitei a balançar a cabeça em concordância, mas por dentro eu explodia e na minha mão a xícara vibrava perigosamente. Quando ele despejou tudo que podia, e mais um pouco, e se despediu, eu bebi o café borbulhante em uma só tacada, para não haver chances de lançá-lo às costas flácidas do seu Silva. O líquido desceu pela minha garganta como larva fervente por cima de algodão doce, corroendo tudo.
Enfim, a razão, mais uma vez, venceu e o rosto do seu Silva escapou novamente de uma queimadura bem que merecida. Mas eu sentir que neste incidente específico foi por muito pouco, sabe? Cheguei prestes a transpor aquela barreira que não permitiria mais que eu desse um passo para trás.
Sair mais cedo do trabalho, pois eu tenho grande saldo no banco de horas, e conseguir tomar o ônibus das 16h00 para casa, antes da hora do rush.
Quando, finalmente, cheguei e pus à chave na porta, Negão, meu pinscher número dois, que amo como filho de sangue, começou agitar-se e latir riscando a porta, naquele ritual costumeiro de pura felicidade que eu presenciava sempre que chegava. Quando entrei na sala e o tomei nos braços, fui alvejado por muitas lambidas e arranhões. Sentei-me no sofá e pus Negão no meu colo, refletindo sobre a minha superação em não enlouquecer toda vez que estava na presença do seu Silva.
De repente, enquanto refletia, olhei para Negão e percebi que aqueles olhos brilhantes me fitavam em pura especulação neutra. Era como se ele penetrasse em minha alma e tentasse acessar os acontecimentos do meu dia. Falei para ele: “Pois é filho, seu Silva escapou novamente, mas foi por triz, aquele velho safado!”. Nesse instante, a boca do Negão se abriu de uma forma peculiar, mostrando uma porção de dentes, era como se ele estivesse sorrindo pelo que eu havia dito, eu nunca havia visto ele fazer aquilo.
Me assustou, naquele momento, a ideia de que meu cachorro estivesse não apenas captando minhas vibrações, mas também entendendo em totalidade tudo que eu lhe dizia.
Peguei delicadamente seu rosto com a duas mãos e mirando os seus olhos com firmeza perguntei: “Você entendeu o que eu disse não foi?” continuei: “Eu sei que entendeu!” Após pressioná-lo com meus questionamentos, percebi uma nota de ansiedade em seus olhos e imediatamente ele desviou o olhar. O danado estava disfarçando, tive certeza. Nessa hora, soltei uma gargalhada, incrédulo e surpreso. Negão aproveitou a deixa e pulou do meu colo, fingindo ir atrás de alguma coisa, correu para a cozinha latindo.
Depois dessa experiência, passei a selecionar com cuidado o que dizer perto de Negão, para ele ou deixar que ele ouvisse.