O PRIMEIRO ENCONTRO COM A CRUVIANA NO SERINGAL
O PRIMEIRO ENCONTRO COM A CRUVIANA NO SERINGAL
Autor Moyses Laredo
Para os que nunca ouviram falar em cruviana, por aqui no Norte, significa vento muito intenso e gelado, friagem propriamente dita, a temperatura abaixa a níveis de Sul do País, em locais ermos de floresta, tem-se notícias da ordem de 6 a 8 ºC positivos. Sempre ocorre, lá pelo mês de junho nas matas dos seringais acreanos e cercanias, incluindo terras bolivianas, é intensificada ainda mais pela pureza do meio ambiente. O oxigênio puro da mata já torna normalmente o ar gelado. Os habitantes desses locais, muitas vezes desprotegidos sofrem muito com a tal friagem. O exemplo contado, ocorreu no Seringal São Gabriel, colocação Manga, de propriedade de uma família tradicional naquela região. Começa assim:
- Fazia dois meses que eu, meus pais e familiares, sendo quatro crianças, três irmãs e um bebê de apenas um ano, chegamos pra aquelas bandas das matas brenhas (mata brava, cerrada; matagal, selva) da Bolívia.
A linha de fronteira entre os dois países, muitas vezes confunde quem por lá vive, pela falta até os dias atuais, de uma demarcação contínua, portanto, em determinados seringais, não se sabe ao certo se está no Brasil ou na Bolívia.
Assim que chegamos ao local de morada, continuou seu relato, meus pais trabalharam dia e noite, incansavelmente na construção de uma aconchegante tapera, de estilo típico de morada de seringueiro, era destacada do chão, toda assoalhadas de paxiubão batido, tendo as paredes de paxiubinhas partidas e pregadas juntinhas uma das outras, a cobertura de palhas ouricuri (em tupi-guarani ¨o cacho amiudado airi+curí), canari ou ubim (palmeiras da família das Arecáceas, de pequeno porte, com até 5 metros de altura), amarradas com tiras de toari (árvore de grande porte, onde se extrai da casca, as tiras que servem para peiar). Enquanto a tapera aprontava, a gente se ajeitava como podia, em um tapiri tipo “rabo de jacu”, que é um pássaro da Amazônia igual ao peru selvagem, porém, de menor porte, que tem as penas da calda comprida abrindo-se em um grande leque, foi daí de onde se tirou o nome desse tipo de cobertura de uma só água, feita de palha de ouricuri sem paredes. A gente se amontoava sempre no fundo com uma fogueira acesa na frente para espantar os bichos, lá também o pai montou uma mesa troncos finos, onde a gente fazia as refeições, a mãe só cuidava da comida porque ajudava também o pai na feitura da tapera. Passamos quase dois meses morando desse jeito, nada muito diferente do que já havíamos vivido em outros lugares, sempre era assim toda vez que o pai arranjava outro trabalho, o ruim era quando ele pegava “empeleita” (empreitada) de corte de madeira, porque passava muito tempo fora, a mãe é que cuidava de tudo, caçava, pescava e fazia comida. Como tudo era provisório, a gente morava desse mesmo jeito acabamos se acostumando com essa vida.
Assim que o pai cobriu, a gente se passou pra dentro, foi um verdadeiro alívio, morar numa casa nossa, ela possuía quatro cômodos assim dispostos, uma sala, dois quartos e o vão (corredor) da tapera, dava acesso para a cozinha. O pai fez um fogão de barro de argila grudado, (amalgamado) junto da paredinha onde embaixo dava pra guardar as achas de lenhas (pedaços de pau, tronco, galhos, usados como lenha). As redes eram armadas ou "atadas" como se diz no vocabulário local, no esteio do segundo quarto, sendo que uma delas era atada bem na sala, para o sossego do pai se "embalar" ou tirar um cochilo, depois que retornava das estradas de seringas, dos cortes da noite da sua colocação, esse era parte do trabalho dele, mas descansava por pouco tempo, tinha que defumar as pelas (pelotas de látex). Quando chegava de manhazinha, sempre trazia alguma coisa pra gente comer, qualquer caça miúda servia (paca, cotia, macaco, jaboti) ele não tinha preferência, era com o que ele se deparasse no caminho, tudo para a nossa sobrevivência, já deixava o “fato” (intestino) no local para dar de comer aos outros bichos.
Nos seringais só se dorme em redes cada um tem a sua, mesmo quem não estivesse com a sua, por causa da lavação, ou chegado de última hora, tinha que dormir em dupla na mesma rede e sem arengas, dormia um cheirando os pés do outro, para isso a mãe já dizia logo, - “minino, vai lavar os pé”, a gente já sabia que ia dormir em dois, sempre era menino com menino ou menina com menina, pra não ter saliências; o outro quarto, era do pai e da mãe.
Quando chegou o mês de junho, sem conhecer nada dessa novidade do lugar, fomos pegos de surpresa com a chegada da cruviana (friagem), um frio besta fera que inesperadamente aconteceu alguns meses após nossa chegada, foi o maior susto, que diabo era aquilo? ...era tão forte que a gente até sentia a bicha pelo fundo da rede, doía as costelas de tanto tremer, era uma tortura e tanta pra todos nós que nunca tivemos nada igual, nesta noite a gente não dormiu, passamos se movimentando, pela primeira vez deu saudades das carapanãs do lago Ubim, de onde a gente tinha saído. No primeiro dia depois da friagem, ao amanhecer sem entender aquilo fomos acordados com um vento gelado, que assobiava nas frestas das paxiubinhas, ao abrir a janela nos deparamos com uma garoa fina, uma névoa sobre as copas das árvores, foi quando meti a cara pra fora e vi que tava tudo branco que não se via nada e só se ouvia os pássaros cantando, no lugar que antes, a vista da gente corria solta.
As cobertas eram escarças havia poucas, a mãe dava preferência para os menorzinhos, tínhamos que nos embrulhar com as varandas das redes, mas que não dava vença com o frio da madrugada, a tapera de paxiúba é fresca, adequada para os demais dias do ano, onde o calor abrasador e é um atormento; às vezes, uns espertinhos puxavam a lamparina pra baixo das suas redes, para aquecer melhor as costas, até que resolvia, era uma opção extrema mas logo pela manhã, tinham que enrolar a rede rapidinho porque se a mãe pegasse eles teriam que sair para lavá-las, porque “empreteava” de fuligem todo o fundo.
Na noite seguinte a mãe, passou a colocar um fogareiro à lenha, que o pai fez nas carreiras, daqueles pequenos, feito com lata de querosene, ficava aceso a noite inteira no centro do quarto, para esquentar o ambiente, foi a nossa salvação, a preocupação que se tinha além de cuidar para não incendiar tudo, era o de abastecer com lenha de vez em quando, essa tarefa, a mãe dava para os mais velhos, o diacho era quando acabava a lenha que se colocava ao lado do fogareiro como reserva, aí se tinha que levantar e ir até a cozinha catar debaixo do fogão, pegar mais algumas achas, mas no caminho o vento frio cobrava seu preço, cortava a pele da gente, mais era o jeito.
Depois de oito dias nessa inana de muito frio, o sol resolveu mostrar as caras, a forte e fria ventania que arrastava tudo que tinha pela frente até as folhas das copas no alto das árvores, que foram sacudidas pelos ventos, deixou uma sujeira no terreiro das grande, a gente passou muito tempo limpando, mas valeu como experiência, a próxima cruviana a gente se preparou, tinha até coberta de feltro, feito de lã de carneiro, que o pai comprou do regatão, bom demais pro frio.