Entranhas no chão e ainda sem glória

Enquanto a água da chuva violava sua velha casa por entre a meia dúzia de goteiras e pousava em baldes e bacias espalhados pelo chão fazendo baixos e irritantes barulhos, Hal, sentado em sua velha poltrona e fumando um cigarro vagabundo, revirava e cutucava memórias de um passado tão longínquo que parecia uma miragem ou algo que não era realmente seu. Como se por algum milagre lembranças de outras pessoas houvessem sido plantadas em sua mente e com o ar de novidade surgissem ininterruptamente sem permissão. Definitivamente ele não possuía o desejo de lidar com aqueles tempos idos tão perigosamente tristes e inalcançáveis.

Relembrava cenas sólidas, onde tudo era mais claro, feliz, racional. Tempos nos quais não havia loucura, solidão ou dor. Momentos de quando era criança e adorava sua rotina, desde o momento em que acordava cedo e se saía para o terreiro de casa para promover lutas entre seus bonecos e banhar-se num sol que, impossível saber na época, nunca mais veria. Adorava até mesmo a escola, a correria com seus amigos e o futebol. Ser recebido em casa após isso tudo, com a mesa para o café pronta e sua mãe distraindo-se com as velhas revistas de palavras cruzadas. Havia um sorriso terno naqueles dias, não havia? Sorrisos honestos banhados em ingenuidade, não rostos deformados banhados em sangue.

Foi trazido à realidade pelas cinzas queimando lentamente em seu peito, tendo a sensação de que havia deixado seu corpo por alguns minutos. A realidade era dura e honesta como um soco na cara e a noite se espalhava como uma doença pelo cômodo. Escurecia tudo e levava consigo toda a esperança. Hal levou lentamente a mão ao rosto e sentiu o resultado do propósito de sua vida. Vários cortes e inchaços enfeitavam seu rosto como uma horrenda máscara de Halloween e seus músculos se queixavam sempre que requisitados. O olho esquerdo tão castigado mal podia ser aberto. De certa forma acreditava que deveria ser grato por ter todos os dentes.

Sua vida já se encontrava na sarjeta quando encontrou a oportunidade de se tornar um pugilista. Não havia sonho algum relacionado a isso, nem mesmo uma vontade. Apenas uma necessidade e falta de opções. A situação de sua família obrigou-o a ir para as escolas mais perigosas da cidade quando ainda tinha 13 anos, e desde então foi necessário que criasse uma barreira em volta de seu coração para não fraquejar diante de seus numerosos inimigos. Mas muitas vezes até mesmo esta barreira, que suportava xingamentos escarrados, socos por todo o corpo, humilhação, rejeição e inaptidão, fraquejava e seus escombros se mostravam através de pequenos gemidos durante a noite que não eram escutados por ninguém exceto ele mesmo. Por convulsões incontroláveis e aparentemente intermináveis embaixo de apenas um lençol nos dias mais frios e escuros do inverno.

Consequentemente, Hal, aos 19 anos, era um homem muito mais ciente dos labirintos da vida que a maioria dos cinquentões barrigudos bebedores de cerveja e cheios de lições de moral para seus filhos espinhentos e pseudo-rebeldes. Conhecera o medo como ninguém e não havia ajuda para um marginal. Tinha muitos arrependimentos em relação aos crimes em seu passado, mas haviam sido inevitáveis para sua sobrevivência. Nunca se envolvera em atos violentos ou de grande repercussão, sua ficha criminal se resumia a alguns roubos e tráfico de drogas, crimes pelos quais nunca fora capturado. Era peixe pequeno, mas era um peixe bastante esperto.

O dia fatídico no qual uma futura carreira surgiu em seu futuro no teve nada de especial. Hal caminhava ligeiramente bêbado em meio a milhares de pessoas e um vento quente vindo talvez do inferno soprava como o bafo do demônio. Andava curvado com as mãos nos bolsos e a junção de sua barba falha mal feita, sua camisa branca encardida, calça jeans rasgada e botas de operário culminava na perfeita imagem de um pobretão sujo. Ninguém o olhava e ele olhava ninguém, estava imerso em alguns pensamentos pervertidos sobre a prostituta que vira pelo caminho. Lamentava não possuir o dinheiro para usufruir uma hora de prazer deturpado.

Logo do outro lado havia uma espelunca caindo aos pedaços com uma placa em piores condições com a simples inscrição “BAR”. As letras vermelhas na placa branca estavam tão gastas quanto todo o resto do lugar. Mas não seria nenhuma novidade para o pobretão sujo, ele já estivera em lugares piores.

Ao atravessar a rua o álcool já fazia seu efeito e Hal não olhou direito por onde ia. Alguns centímetros separaram o carro freando bruscamente de sua perna direita que por pouco não virou um saco de ossos esmigalhados. O motorista ainda apertava a buzina estridente enquanto gritava palavrões de dentro do carro quando Hal deu um tapa no capô mandando o desgraçado para o inferno. Foi tudo muito rápido, logo quatro homens desciam do carro com raiva nos punhos cerrados. Hal não havia visto direito. O carro era um Hummer Alpha e, como ele teria imaginado em outra situação, os jovens que saiam de seu interior estavam todos fardados. Eram jovens militares com braços do tamanho de pernas e rostos angulosos de olhos como pequenas fendas malignas.

- Tá maluco, seu filho da puta? – Disse o motorista inchado com uma voz estranhamente aguda para alguém de seu tamanho.

“Outra enrascada”, pensou Hal com seus botões. Não desejava algo do tipo naquele dia, estava muito cansado. Os homens caminhavam em sua direção e era uma questão de honra ficar no lugar sem recuar. Hal podia facilmente lidar com um, talvez até mesmo dois daqueles brutamontes, mas quatro? Esteve em brigas desde pequeno e era bastante eficiente quando soltava seus jabs e diretos, além de possuir uma constituição física tão boa quanto qualquer idiota do exército, mas aquela situação não estava boa para ele. Subitamente percebeu que era uma questão de agir de maneira rápida e impetuosa. Não havia como escapar do confronto e fugir não era opção, então teria de confiar em sua inteligência para vencer os quatro cavalheiros.

O primeiro a tombar foi o motorista falastrão. Hal esperou a distância diminuir o necessário e retesou os músculos. Rápido demais para alguma reação do pobre homem um curto jab foi lançado contra seu rosto anguloso e antes de poder esboçar reação um cruzado destruidor acertou sua orelha na parte de trás, trazendo uma boa dose de desorientação enquanto ele batia com a cabeça na lateral do carro antes de cair de vez.

- Merda!

- Oh, Deus!

- Ron!

Hal se lembrava muito bem de ter achado uma graça gigantesca diante da maneira como estas palavras foram ditas, colocadas em perfeita sincronia uma após a outra, nunca soando duas vozes ao mesmo tempo. Por isso o próximo homem a cair viu um sorriso no rosto de seu agressor enquanto levantava os braços em desespero num esboço mal feito de guarda e sentia a mandíbula deslocada por um poderoso direto.

Agora a adrenalina pulsava poderosa na corrente sanguínea de Hal e ele não iria parar. Sentia-se louco e feliz, como se através de seus socos descarregasse as desgraças de sua vida que de outra forma ficariam presas sugando sua alma. Por isso ele ainda sorria quando deu passos decididos para os outros dois homens agora amedrontados. Mas todos sabem o que dizem sobre animais encurralados. Dessa vez houve ataques por parte dos militares e Hal foi pego de surpresa pela habilidade do terceiro lutador, que com uma inesperada cotovelada abriu um grande corte em seu supercílio. Com tal ferimento foi obrigado a recuar dois passos para se refazer, e quando caminhou novamente para o embate explorou as aberturas de seu oponente brilhantemente. Sua guarda era cheia de falhas, deixando quase totalmente expostas suas costelas. Então tudo o que foi necessário foi se esquivar do primeiro direto do adversário e colocar dois cruzados nas costelas, fazendo o homem se curvar e abaixar a guarda, esquecendo de seu queixo ainda à mostra e terminando apagado no chão por isso.

O quarto sujeito... bem, o quarto sujeito levantou os braços com as mãos abertas pedindo desculpas. Hal precisou de um esforço gigantesco para se controlar e não bater no idiota com cabelos louros de bebê, ainda mais quando constatou seus olhos azuis brilhantes. Eram exatamente como os de seu pai.

Quando tudo terminou a dor surgiu e ele logo percebeu o quão profundo era o ferimento ao olhar para sua camisa. Grandes manchas vermelhas se espalhavam inclusive por sua calça e até mesmo sua bota preta. A dor também começava a despontar. Ao olhar ao redor viu uma série de passageiros com olhos arregalados e um deles falando ao celular. Era uma questão de tempo até a polícia surgir e aí sim estaria em apuros.

- Ei, rapaz! Aqui!

Logo atrás do Hummer havia um Cadillac 1969 verde e um velho com a cabeça careca para fora da janela do motorista, gesticulando rapidamente com mão.

- Entre logo! Tá esperando o que? O papai Noel?

Hal olhou rapidamente para os lados e, tendo a impressão de ouvir sirenes ao longe, logo viu a falta de opções. Correu para o carro e entrou pela porta do passageiro. O velho arrancou fazendo os pneus cantarem e quase esmagando a cabeça de um dos homens caídos. Aparentemente possuía a sina de encontrar apenas malucos em seu caminho. O motorista idoso virou a cabeça em sua direção e expondo os dentes escurecidos de nicotina em um sorriso malicioso perguntou:

- Já pensou um lutar boxe, meu jovem?

Nunca havia pensado. Mas o que de melhor haveria para se fazer?

Logo no dia seguinte estava na academia, um lugar com cheiro de desinfetante e suor que trazia uma fragrância extremamente poderosa às suas narinas e da qual nunca se esqueceria, pelo resto de sua vida. O nome do careca era Henry, mas por algum motivo todos os chamavam de Dom. Aparentemente havia sido um grande atleta em sua juventude, mas Hal não estava preocupado com isso. Pouco o preocupava, se a este ponto ainda não havia ficado claro. Nem mesmo permanecer vivo.

Obviamente possuía o dom para bater em pessoas, mas logo o seu treinador o fez perceber de que isto pouco valia quando se pisava em um ringue. Foi para onde se dirigiu depois de um rápido aquecimento e uma dose de arrogância deixada com seu treinador. Dom apenas sorriu enquanto colocava o equipamento.

- Para que toda essa merda, velho? Devia se preocupar mais com o outro cara.

Dom sorriu novamente e lhe deu um tapa na cabeça, devidamente protegida.

- Suba logo, idiota.

Hal grunhiu, mas o fez. Dom se virou, assoviou e chamou um homem que treinava sozinho no saco de pancadas.

- Ei, Sullivan! 3 rounds de 3 minutos, vamos aproveitar que está aquecido.

Ele não parecida grande coisa. Grande, sim. Musculoso, sim. Mas nada que Hal não houvesse enfrentado e vencido antes.

Ele veio sem dizer palavras. Ninguém parecia dizer não a Dom naquele local. Era seu pequeno reino de suor, aparentemente.

- Pode ir com tudo, meu jovem - disse o treinador, sem colocar qualquer equipamento no outro lutador, este apenas tirando de seu short um protetor bucal. Hal sorriu. Ele precisaria.

Cada um em seu canto, Dom gritou para que começassem.

Não importava se o outro lutador era experiente no boxe. As mãos calejadas de Hal fariam seu serviço como sempre. Seu saco de pancadas eram outras pessoas. Tinha suas próprias cicatrizes. Por fora e por dentro.

Ele não viu o primeiro soco que atingiu seu olho, nem o segundo em direção a seu estômago e nem o terceiro em seu queixo.

Caiu sentado.

Não fazia sentido, por que suas pernas haviam falhado? Sua visão agora se embaçava. Institivamente levou a mão até lá, mas a luva não permitiu o toque. Sua barriga doía, mas era o menos pior.

Como isso havia acontecido?

Ele se levantou segurando as cordas. Dom o olhava. Seus olhos sorriam.

A raiva começava a surgir, segura e inabalável. Confiável.

Ainda tonto ele foi para frente, preparando sua direita. Ninguém aguentava sua direita.

Por um milésimo de segundo, quando o soco saltou de seu ombro ele sabia que o outro homem cairia e quem sorriria àquele filha da puta careca seria ele.

Novamente, de forma inesperada, o outro homem simplesmente se abaixou, deu um passo para o lado e acertou seu queixo com um cruzado de esquerda.

Novamente suas pernas cederam e ele foi ao chão. Como?

Fernando Domith
Enviado por Fernando Domith em 06/06/2022
Reeditado em 14/11/2024
Código do texto: T7532342
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