Teimosia e improviso
Para seu pai, ele era crônico social.
Daquele tipo que é jogado em lugares cercados por muros e cujo objetivo não é a cura e nem a recuperação, apenas o controle.
Para ele próprio, quem precisava de cura era o rumo que a humanidade seguia, o qual não queria ser cúmplice, e isso foi mais do que provado sem que o pai tivesse clareza e longevidade para constatar, pois morreu sem se desfazer de suas convicções obtusas.
Agora, à beira dos cinquenta anos e olhando em retrospecto sem motivo para nostalgia ou arrependimentos, Zimi sentia um pouco de alegria quando cada dia terminava sem chateações importantes o suficiente para estragar o momento noturno em que novamente avaliava a situação do mundo através das notícias fornecidas por fontes confiáveis.
Havia para ele um certo prazer em comparar sua trajetória até então com a média do resto das pessoas e saber que até ali havia dignidade em sua existência.
Não era um prazer tão intenso, pois sabia que um dia morreria, e se não deixasse algum trabalho artístico autoral de qualidade, seria esquecido com facilidade rapidamente, como a esmagadora maioria das pessoas.
Isso também pouco importava, desde que antes de morrer alcançasse sua paz individual.
De qualquer forma, o problema está na possível agonia que antecede a morte, como alguma doença dolorosa, e não a morte em si.
Ela, em si, certamente traz algum tipo de descanso, independente do que aconteça depois.
Muito se especula sobre o que vem depois, mas ninguém volta para contar
Sabendo que suas opiniões e sua ideologia não deveriam prevalecer sobre a face da Terra, a busca por essa paz se tornava uma prioridade de vida.
Por muitos anos da sua juventude, dizia à sua mãe que jamais chegaria aos trinta anos.
Era um tempo em que tomava cuidado para não fazer ranger a tábua do corredor da casa durante a madrugada, para evitar que alguém acordasse para gralhar sobre o dever de estar dormindo naquele momento, como todos na casa, enquanto um tempo precioso da vida era desperdiçado.
Quando era criança, nos anos setenta, suas professoras na escola estavam na faixa etária dos trinta anos e pareciam senhoras de meia idade, mas agora era possível ter cinquenta e ter alguma jovialidade sem parecer ridículo.
Muito antes de ter contato com qualquer teoria ideológica mais definida, já tinha o desejo por um tipo de liberdade individual que não era possível no modo de vida regido pelo senso comum, e questionava o porquê de as pessoas gostarem de viver sob um patrulhamento coletivo que só as levava à uma vida castrada de sonhos e boas perspectivas.
Havia inúmeras piadas internas entre os amigos sobre o verdadeiro nome de Zimi ser Chistopher McCohen Oliveira.
As pesquisas na internet sobre seus homônimos geravam ainda mais piadas, a cada vez que eram feitas.
Apesar de alguns amigos considerarem um nome expressivo foneticamente, a bebida às vezes tomava o lugar da consciência, e a zoeira virava quase um bullying, e a vingança de Zimi consistia geralmente em arrumar um jeito de lembrar que Deus não existe toda vez que os pais desses caras estivessem por perto, causando polêmicas entre famílias cristãs, principalmente porque seus amigos também eram ateus.
Não havia qualquer parentesco de Zimi com qualquer pessoa famosa com o mesmo sobrenome.
Herdou do pai, um escocês pobre, apenas o sobrenome.
Zimi arriscou numa carreira musical tardiamente sabendo que provavelmente nunca ganharia dinheiro com ela, até porque seu desprezo pelo mainstream era visceral e ele acreditava que a arte era mais genuína se o artista tivesse que se manter com outros trabalhos.
Ele se imaginava artista solo, antes de entrar para a banda Crop Circles como baterista e cantando algumas das músicas, pois sabia que seria difícil encontrar alguém que compartilhasse de suas ideias de concepção musical.
Preza poder fazer algumas viagens pelo interior para shows em praças e bares, e agora sente o peso de viajar na Belina 82 da contrabaixista Mila Cox, dormindo em sacos de dormir antes de pegar a estrada novamente, de volta para casa ou a caminho de algum outro show, feito muitas vezes apenas em troca de gasolina e cerveja.
Dinheiro mesmo, só conseguiam com a venda de camisetas e cd's.
Orgulham-se de não serem classificados em nenhum gênero específico do rock (Mila Cox , quando questionada sobre o som, o descreve como 'lúdico e psicodélico’), e geralmente, por motivos diversos, a reprodução das músicas ao vivo não correspondia fielmente ao que apresentam nas gravações feitas em seu estúdio caseiro, que conta com poucos recursos além de um computador.
Gostam de ressaltar que os Beatles em sua época tinham à disposição uma tecnologia bem inferior, mesmo sendo a melhor possível para o período.
Ela, muito mais jovem, gostava de tocar com ele por causa de seu gosto musical irrepreensível e porque via em sua personalidade algo entre o orgulho e a sinceridade.
Quando não estavam fazendo música, ele não a procurava nem mesmo se estivesse desesperado, por qualquer que fosse o motivo.
Desde criança, Zimi gostava de artistas estranhos que não apareciam na televisão ou não tocavam no rádio, e ficava intrigado sobre como essas pessoas viviam, sendo que para todos existem contas a pagar e compromissos sociais que são impossíveis de escapar.
Daí vinha a óbvia conclusão de que precisavam de outro trabalho para terem o que comer e onde morar, o que para ele, enobrecia o trabalho artístico.
Apenas em segundo lugar vinha a admiração pela bizarrice de suas expressões artísticas.
A primeira vez em que ficou chocado com uma apresentação de música ao vivo foi no meio dos anos oitenta, quando viu no Madame Satã, em meio a várias outras atrações, um sujeito de meia idade pelado que em lamúrias cantava impropérios pagãos e queimava uma bíblia, acompanhado de uma banda minimalista em que o baterista tocava de pé como Slim Jim Phantom e uma garota tocava teclado, e não havia baixista nem guitarrista.
Alguns tabus de uma sociedade oprimida (artisticamente e também em setores fora da arte) caíram diante dele naquele momento, através de um tipo de expressão que até então ele só ouvira falar, e ainda assim, repudiada pelo ponto de vista do opressor, horrorizado com a existência desse tipo de manifestação imprópria ao horário comercial.
Qualquer artista internacional que pudesse servir de referência naquele tempo, precisava de pelo menos uma mínima escalada no mainstream para que chegasse ao seu alcance no Brasil naquele tempo através de fitas cassete e não eram tão obscuros no cenário internacional quanto pareciam ser aqui.
A verdade nunca é contada no horário comercial e o opressor, na melhor das hipóteses, é fã de velhos crooners canastrões de boates de cassino.
Para esse tipo de situação, o rolo compressor da opinião pública se mantém inoperante.
Falando em termos comportamentais, o espaço de tempo para que atitudes consideradas normais na época de sua adolescência (inclusive formas de racismo televisivo inimagináveis para os dias de hoje) se transformassem nas bizarrices que se tornaram para os dias atuais foi relativamente curto.
Nesse período, a qualidade humana, de um modo geral, não melhorou, mas as patrulhas ideológicas e comportamentais tomaram conta da existência social numa proporção inimaginável para tempos anteriores à internet.
Muitas dessas patrulhas agem a serviço do nada, capitaneadas por mentes doentias na frente de um computador e que desconhecem até mesmo uma razão decente para estar vivo.
A limitação imposta pela ignorância os faz ter convicções rígidas.
Ao mesmo tempo, olhar para o passado era para Zimi um exercício que passava longe de ser prazeroso. As patrulhas malignas já atuavam com os recursos que tinham antes, sem a mesma rapidez e propagação.
Toda a falta de planejamento para o futuro de que Zimi era acusado na juventude se justificam agora, com a possibilidade iminente de algum velho que não teve seus desejos políticos correspondidos apertar um botão e liquidar o planeta, o que desestimula qualquer sonho a longo prazo e salienta a necessidade de viver o agora, e caso haja algum futuro para a humanidade, ter algo digno para lembrar se olhasse para o passado.