Perspectivas
Quanto mais luz, mais sombra se sobrepuja a nós. Abro as portas da percepção e olho um local escuro. Caminho reto mesmo sem enxergar, meus sentidos estão confusos, minhas certezas estão abaladas. Como pode a luz escurecer-nos a consciência? Esbarro-me em objetos estranhos, aparentam ser móveis. Meus pés sentem ao solo uma caminhada sem fim, um longo tapete revestindo o chão; dou largos passos neste terreno desconhecido, um som de piano abana meus ouvidos. Que música solene: poderia reconhecer em qualquer lugar, até mesmo nesta penumbra escura: Paul de Seneville. Uma ótima composição, mas ela começa a distorcer, algumas notas graves escapam do ritmo, e a melodia parece reverter. Aproximo-me mais do som, toco meus dedos e percebo uma vitrola. O vinil arranha e a vitrola some! Não entendo o que se passa, sinto-me em um pesadelo, mas com receio, continuo a caminhar.
Uma luz do alto me fita, como se eu estivesse em um palco de teatro, e de lá cai uma maçã aos meus pés; ela está banhada em sangue, mas a pego. Certo vislumbre de um sonho é remanescido por mim — em algumas ocasiões de outrora, eu gostava de ir ao jardim com meu pai. Lá percorria um vento tão fresco, poderia sentir a sensação por toda a vida. Uma macieira era avistada do jardim. Certo dia meu pai e eu estávamos caminhando até ela, foi quando ele começou a descrever sobre a vida, como as coisas são impermanentes e como nem tudo é como os olhos enxergam. Ele disse que a vida era como um quadro, ao olhar em uma distância considerável, a percepção do quadro muda. Quando se olha uma rosa de canto de olho, ela pode se tornar um espinho, mas quando a vemos de perto, ela se torna bela. Hoje entendo a metáfora que havia mencionado. Nesse dia fui até uma bela maçã, vermelha com rubi, com certeza devia estar divinamente saborosa. Porém, chegando perto, uma pomba foi em direção a maçã. Ela bateu a cabeça em um tronco, derrubou a fruta e caiu por cima dela. Seu sangue pingou nas laterais. Não obstante, a perca da minha fome que se exauriu na hora, a tristeza melodiou meu coração; chorei pela morte do animal.
Meu pai me consolou e disse que estava tudo bem. Mencionou como o discurso anterior ao ocorrido fazia jus à filosofia existencial: ‘’A brevidade da vida é como um pássaro, cantarolando nas nuvens pomposas, mas certo dia um tronco irá nos distrair do nosso voo e debruçaremos em uma música de nota triste; essa nota parecerá que não tem fim, mas acredite, tem.’’. Voltamos para casa e eu sem entender nada. Sentindo-me acanhado e de certa maneira com culpa pelo acaso que ocorreu.
Acordo desse pesadelo. Já é dia e o céu nublado deixando tudo pior. Tomo meu café e vou ao quintal olhar as árvores. Agora sei, a luz não escurece nossa consciência, pelo contrário, ela abre nossa percepção e nos dá perspectivas diferentes. Estou no momento na escuridão, papai, com você as coisas eram mais claras. Foi enterrado ontem, mas parece uma eternidade. O luto faz parte, não é? Mas… sinto sua falta.