Conto das terças-feiras – As vacas de seu Martiniano
Gilberto Carvalho Pereira –Carcavelos, PT, 17 de maio de 2022
Início da década de 1950, Fortaleza, ainda com ares de cidade pequena, mas com sua população já beirando os 230.000 habitantes, distribuídos nos seus 312.441 km2 de área total, contava com um bairro preferido pelas famílias de maior poder aquisitivo. O bairro Aldeota, tipicamente residencial, com suas largas avenidas, belos casarões e sobrados, configurava-se como local ideal para a moradia da elite fortalezense, que se estabeleciam, preferencialmente, na Avenida Santos Dumont, que iniciava na Rua Dona Leopoldina indo até a Avenida Barão de Studart. Dos lados esquerdo e direito dessa avenida, as Ruas Pereira Filgueiras e Pinto Madeira completavam o quadrilátero do mais novo bairro elegante da cidade.
Esta delimitação, compreendida por mim, circunscrevia a localização do trecho onde se destacavam os palacetes e bangalôs dos ricos senhores do algodão. A área mais cuidada da cidade. Contudo, até mesmo na encantada Aldeota, a infraestrutura urbana e todos os serviços como o transporte, água, saneamento básico, recolhimento de lixo e fiscalização sanitária, eram insuficientes.
Nessa época, morávamos na Rua Antônio Augusto, acima da Rua Pinto Madeira. Casas geminadas, quintais grandes, ocupados com árvores frutíferas, produzindo goiaba, manga, banana, graviola, ata, às vezes milho e outras mais. Uma cacimba – poço – servia água às duas casas, a nossa e a do seu Martiniano, por meio de um cata-vento, que sugava o líquido para dentro de uma caixa-d’água. Não havia conflito quanto ao seu uso, os dois terrenos eram separados por um muro, que passava sobre o centro do poço, permitindo que cada família pudesse usá-lo ao mesmo tempo.
Seu Martiniano era um senhor rude, vindo do interior, com todas as suas manias interioranas. Trouxe com ele, a família e suas três vacas. Para isso, tivera que comprar uma parte de outra área contrária ao lado de nossa casa, para acomodar Marilu, Milu e Mimosa, suas vaquinhas, que alimentavam de leite quase dois quarteirões de nossa rua, a preço mais barato que outras fontes de fornecimento. A instalação de um curral em plena área residencial não era problema, não havia fiscalização e os vizinhos não denunciavam, tiravam proveito.
Certo dia, ao presenciar seu Martiniano ordenhando as leiteiras, o que fazia todas as manhãs logo cedo, fiquei a admirá-lo pela paciência, o que não tinha com os familiares ou qualquer outro ser humano. Quando chegou a vez de Mimosa, a queridinha, ele não precisava nem amarrar as pernas dela, tão dócil que era.
Assim, sentado em seu banquinho de ordenha, o homem colocou o balde coletor do leite no chão, sob as tetas do animal e deu início à ordenha. Encontrava-me sobre a borda de proteção da cacimba, apoiado por uma tampa de proteção, para espiar como ele tirava o leite das vacas. De repente, Mimosa deu um coice e um mugido alto, como se tivesse sentido uma dor muito forte, jogando o homem ao chão. As pernas compridas de seu Martiniano projetaram-se entre as pernas do animal, indo de encontro ao coletor de leite, já quase cheio, derramando todo o líquido branco.
Recuperando-se daquela situação, passou as mãos pela cabeça descendo até os pés, constatando que estava todo sujo de merda de vaca e de leite. O sangue subiu-lhe à cabeça, uma raiva descomunal apossou-se de seus instintos, e numa agressividade incomum, deu um chute no úbere daquela que lhe proporcionava uma renda diária e saiu esbaforido do local.
De meu posto, chamei-o de imbecil, idiota, malvado e outros impropérios. Ao ver-me, sua raiva aumentou, agachando-se, apanhou um punhado de merda misturado com areia e jogou sobre mim. Ao tentar me desviar, a tampa da cacimba partiu-se ao meio deixando-me pendurado, com as pernas do lado de dentro e sustentado pelos dois braços que, em puro reflexo, abri-os, para não cair. O homem não se preocupou em saber o que acontecera comigo, continuou sua trajetória com destino à porta do quintal de sua casa.
Fiquei nessa posição por mais ou menos uma hora, já quase não aguentando, até alguém aparecer no quintal. Minha mãe estava a me procurar, eu não queria que fosse ela, mas não houve jeito, levei umas palmadas. Esse episódio deixou meio quarteirão sem leite, até nós. Desde esse dia, o dono das vacas mandou todas para a fazenda, no interior, não anunciando para seus fregueses essa decisão. Acho que com receio de ser denunciado por mim ou minha família.