Sem Limites

-Meu filho!

-Mãe!

Eu abracei meu filho e choramos. Sentamos naquela saleta tão sem conforto, tão impessoal. Conversamos e eu entreguei a ele algumas coisas que trouxe.

Pela primeira vez eu visitava meu filho desde que tudo se consumou e ele foi levado para lá. Ele estava abatido e triste. A fisionomia dele cortou meu coração. Foi a pior coisa da minha vida entrar ali pra visitar um filho.

Conversamos e ele encostou a cabeça em meu ombro como quem pede socorro. E eu estava impotente, pela primeira vez na vida eu não podia fazer nada por ele.

Meu marido e eu tivemos dois filhos, um menino e uma menina.

Nós dois vencemos na vida com muito sacrifício. Vínhamos de família de classe média baixa e nunca tivemos muita coisa. Tudo era com dificuldade.

Queríamos dar aos nossos filhos tudo que não tivemos. Brinquedos caros, roupas de grife, boa escola. Eles frequentavam os melhores lugares da cidade.

Não éramos ricos, mas tínhamos um nível de vida bem melhor que nossos pais.

Eles sempre tiveram tudo o que queriam. Não medíamos sacrifício para dar o que queriam. Fechávamos os olhos para as birras e respostas atravessadas que davam. Não percebíamos, mas eles mandavam e desmandavam em nós.

E a gente sempre cedia com medo de magoá-los.

Cada vez mais eles se tornaram voluntariosos e se a gente negava alguma coisa ele emburravam até receberem o que queriam.

O tempo foi passando e meu filho começou a se sair mal na escola. Era sempre malandro e não queria saber de estudar. Com muita dificuldade conseguiu terminar o ensino médio e não quis saber de cursar faculdade. Também não queria trabalhar. Nunca se dava bem nos empregos que o pai conseguia pra ele.

Minha filha conseguiu cursar uma faculdade, mas também não se dava bem nos empregos.

Sempre tínhamos que bancar os dois. E a gente continuava passando a mão na cabeça deles.

Aos vinte e três anos meu filho conheceu uma garota e pela primeira vez demonstrou interesse em um namoro sério. Parecia apaixonado e ela também. Seis meses depois ela engravidou e quiseram se casar. E mais uma vez nós cedemos. Ele se mostrava mais responsável e começou a trabalhar.

Nossa neta nasceu. Era linda. Nós ficamos encantados. Mas a mãe dela era uma jovem de vinte anos. Era inexperiente e nem sabia direito como cuidar da filha.

As coisas começaram a desandar. As brigas eram frequentes e ele algumas vezes a agrediu fisicamente. Quando ele perdeu o emprego, foi a gota d’água. Ela quis se separar e ele a ameaçou. Ela cedeu e ficou.

Por mais três anos eles viveram numa situação de insegurança. Ele não parava em um emprego. Tínhamos que ajudá-los financeiramente.

Por fim, a esposa cansou e se foi com a filha quando ele estava trabalhando. Pediu uma medida protetiva e ele estava impedido de se aproximar dela. Eu sempre pegava minha neta para passar o final de semana conosco.

Meu filho parecia conformado com a situação. Aceitou a separação. Tudo parecia correr bem.

Mas estávamos enganados. Uma noite ele saiu de casa. Depois de beber com os amigos foi para a casa da minha nora. Ele sabia que seus pais não estavam em casa. Chegando lá, segundo os vizinhos, ele implorou pra ela voltar pra ele. Ela se negou e o mandou embora. Eles então discutiram acaloradamente e ele pegou uma faca e deu várias facadas nela e na filha e depois tentou o suicídio. Minha nora e minha neta não resistiram aos ferimentos. Ele foi levado ao hospital e ficou vários dias entre a vida e a morte. Mas se recuperou. Saiu do hospital para a prisão.

Para nós foi como se nossa vida tivesse acabado. Como criamos um filho que era capaz de matar a esposa e a própria filha, uma criança de apenas quatro anos? Eu relutava em admitir, mas ele era um monstro. Mas era meu filho.

Nós nos perguntávamos onde foi que erramos.

E naquele dia eu entrei pela primeira vez na vida em um presídio e para visitar logo o meu amado filho. Jamais imaginei passar por isso.

Meu marido adoeceu, ficou deprimido, não queria mais viver. Eu tentei ser forte por mim, por ele e por meu filho. E por minha filha que estava horrorizada com toda a situação.

Os pais da minha nora nos acusava de negligência, passaram a nos odiar e a odiar nosso filho. Contrataram os melhores advogados para tentar condená-lo à maior pena possível.

Nós também contratamos advogados para defendê-lo e tentar minimizar a pena, que sabíamos que certamente viria.

Quando estava sozinha eu só sabia chorar e orar a Deus para que nos desse forças. E que protegesse meu filho. Ele não teve direito de aguardar o julgamento em liberdade.

A cada dia que eu ia visitá-lo, meu coração perdia um pouco de vida. Meu marido quase nunca ia visitá-lo.

Eu comecei a frequentar grupos de oração e grupos de ajuda para encontrar forças pra prosseguir.

E o dia do julgamento chegou. Toda a sociedade e grupos de defesa de mulheres estavam presentes, inflamados e pedindo a pena máxima.

E ele foi condenado a quarenta anos de reclusão pelos dois crimes. Ele tinha na época da condenação trinta e um anos e já tinha cumprido dois anos de prisão. Eu achava que ele não resistiria a essa condenação.

Meu menino, criado com tanto zelo, carinho e cuidado ia passar tantos anos na prisão, já seria idoso quando terminasse de cumprir toda a pena incluindo reclusão e semi aberto.

Aquele fato destruiu duas famílias. Não tínhamos mais vida. A família dela era só dor e ódio e a nossa só tristeza e pesar. Meu marido não saiu mais da depressão, minha filha se sentindo relegada a segundo plano desenvolveu síndrome do pânico e depressão, eu vivia para cuidar deles e para esperar o dia das visitas ao meu amado filho.

E continuava a frequentar os grupos, sobretudo os de ajuda para conseguir sobreviver.

Meu filho estava cada vez mais triste, abatido e deprimido. Eu tentava levar um alento a ele. Mas um presídio é um inferno na terra.

Seis anos depois da condenação ele conseguiu o que tentou quando cometeu os crimes. Suicidou-se na prisão.

Meu marido e eu nos sentíamos culpados. Pensávamos onde foi que erramos tanto.

Mas no fundo, sabíamos onde erramos.

Erramos todas as vezes que demos a ele tudo que queria, todas as vezes que não o corrigimos, todas as vezes que cedemos aos seus caprichos, todas as vezes que deixamos de dizer “não”, todas as vezes que fomos permissivos, todas as vezes que deixamos que agisse como se fosse ele o chefe da família e não nós.

Dói muito pensar que o amamos tanto, mas não soubemos impor limites, não soubemos mostrar que na vida nem sempre podemos ter tudo que queremos. Que o mundo não se resume ao nosso mundinho de fantasias e permissividade. Que todos têm que seguir normas e preceitos e que a civilidade é pra todos. Que muitas vezes a vida vai dizer “não” pra nós.

Sinto uma imensa tristeza quando vejo pais cometerem os mesmos erros que cometemos e criando pequenos monstros que pensam que podem tudo e que não têm que aceitar uma negativa. Da mesma forma que sempre ouvimos que estávamos errados, esses pais ouvem, mas não se convencem, não mudam suas atitudes.

Penso que se tivesse a graça de voltar atrás, faria tudo diferente. Corrigir um filho dói tanto, mas vê-lo numa prisão por ter se tornado assassino dói muito mais.

Enterrar um filho é uma dor que nenhum pai e mãe querem ter que sentir…

(Quantos pais passam por situações semelhantes a esta obra de ficção. Quantos pais pensam estar fazendo o melhor e estão fazendo mal aos filhos.)

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 11/05/2022
Reeditado em 12/05/2022
Código do texto: T7514168
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