Apenas mais um copo
Acordo de meu sono mal dormido decorrente ao barulho vindo da rua, pessoas gritam para reforçar sua suposta felicidade, interações chulas e mal desenvolvidas que se questionadas são chamadas de amizade, gostaria de não me levantar.
Eu detesto a hora do despertar, são minutos corrosivos e deteriorantes, o corpo logo sente o peso de se debruçar para levantar, minhas costas doem, minhas pernas estão pesadas, eu odeio os efeitos que o tempo trás!
A cama range como um velho celeiro que sofreu uma longa exposição de chuva e sol, e não obteve nenhum tipo de manutenção, o barulho me irrita, porém não tanto quanto o cheiro de café fresco, que por um instante burla a certeza da realidade e me faz acreditar que um bom dia me espera, eu odeio falsas esperanças!
Sentado sem a mínima vontade de me levantar, tento me motivar com pensamentos pouco sólidos, mais ilusórios do que realistas, esperando que um deles me incentive a deslizar meus pés pelo chão frio até que alcance a cozinha e receba um “bom dia” pelo caminho, mesmo sabendo que dias bons só acontecem em sonhos.
O dia foi deveras tedioso como de costume, porém a hora que eu esperava chegou, a melhor parte do dia, meu cantinho de aconchego e reflexão, devo-me partir em sua direção agora, já não suporto essa enorme caixa de concreto lacrada.
Tenho minha mesa e meu devido lugar reservados pela chefia ou amigo, gosto de lhe chamar assim, mas vocês o conhecem como garçom, eu não sei seu nome, mesmo que essa seja minha segunda casa, entretanto ele sentou-se e escutou minhas desilusões, presenciou respingos de lagrimas e se pós a me consolar, por isso sinto que, posso lhe chamar de meu amigo, mesmo que não saiba bulhufas de sua vida.
Agora já sentado, depois de carinhosamente ser recebido por conhecidos de copo que em suas mesas estavam, eu me ajeito suavemente, alocando minha coluna na melhor posição possível, cruzo minhas pernas na altura do meu calcanhar, apoio o cotovelo esquerdo sobre a mesa enquanto a mão direita deposita meu maço barato e amassado de cigarro acompanhado de um isqueiro, agora o meu dia realmente começa.
E com meu amigo em sua mão vem o que me faz sorrir chega em minha mesa.
O primeiro copo sempre me desce bem, de forma suave, é como a carícia de uma amorosa mãe, um beijo quente no rosto, é macio e reconfortante, como se recebesse um afago após se machucar quando criança, alguma coisa doeu, mas naquele momento o “carinho” é superior a qualquer dor
O segundo copo quase sempre despercebido, ignorado pela maciez do primeiro e camuflado pelas conversas fúteis e olhares vagos que você distribui ao seu redor
O terceiro copo é a mais pura euforia, emerge como o mergulhador que necessita de ar, é um carnaval de alegorias a desfilar, uma multidão alegre trazendo-lhe boas novas, é um alvoroço
O quarto copo é questionável, desconfiado por si só, sempre te levando a duvidar de suas escolhas, cozinhando caraminholas em sua cabeça até que comece a ferver perguntas
O quinto copo vem acompanhado de um cigarro barato que por minutos eu ignorei, e nesse momento a qualidade de seu paladar já se esvaiu, não te importa sentir gostos, apenas sentimentos e enquanto um enche teus pulmões de futuros problemas o outro turva sua visão para não enxergar
O sexto copo é compromissado com o desgosto, tem um contrato com a lembrança, adora te levar de volta para onde você não é mais bem vindo, te lembra toques, palavras e até fragrâncias, é um rebuliço de sentimentos
O sétimo copo te trás de volta, é realista, sempre te lembrando que acabou, que tudo tem um fim e não importa lembrar se não retornaras
O oitavo copo eu deixei cair, sinto muito por isso, não posso lhes dizer o que ele faria comigo, vamos esperar, o próximo está por vim
O nono copo veio acompanhado de um pequeno pedaço de pano, fui estabanado demais, me desculpe meu amigo, mas deixando isso de lado, esse vai me descer mal, rasgando como a lâmina de um estilete, forte e direto, apenas uma decida
O décimo copo eu decidi que vai ser meu último, não quero deixar mais uma bagunça para meu amigo limpar, seria desagradável em nossa relação tão sólida. Esse me desceu bem, caiu como uma luva em dias frios, as pontas dos meus dedos esquentaram, o corpo reagiu como em um momento de perigo me dizendo que está acordado.
Me levanto apoiando as duas mãos na mesa, recolho meu maço de cigarros, deixo um pendurado em minha boca para a caminhada que me espera, deixo-lhe o trocado da bebida na mesa e saio por cambalear, cair eu não posso, os únicos que tem o direito de cair são aqueles que estão de pé.
A rua continua a mesma, com os mesmos beberrões, aquele único bar remanescente e aberto em meia porta, os mesmos olhares cansados e abandonados pela luz do dia, o cheiro de cigarro barato que empesteia o meu rumo, camisas amassadas, cabelos bagunçados e apenas um destino, o fim.