Entressafra

Então ela tinha dezoito anos e ia para a faculdade, e o que tinha aprendido de mais relevante sobre o que quer que fosse, foi através de sua tia, que apesar de jovem, estava muito à frente do resto da família em maturidade e cultura.

Algumas ideias sobre música, política e amor eram os pilares sobre os quais a sobrinha se sustentava naquele momento de guinada, e agradecia por ter naquele momento alguma referência que não fossem aqueles passados pela escola, pela mídia ou pelos pais.

Até porque os pais eram completamente teleguiados prela mídia, e reproduziam em suas vidas exatamente o que era pregado pelas peças publicitárias que eram enfiadas goela abaixo do povo.

Mas ela tinha algum discernimento instintivo que fora alimentado pela tia, e por isso já era chamada de rebelde pelos outros parentes.

Anos antes, na ocasião em que perguntou à tia sobre o que era o amor, teve a seguinte resposta:

“Isso depende. Caso eu vá muito longe na divagação, peça, por favor, pra que eu volte ao foco da pergunta.

A maior parte do rebanho acredita que ele está em situações como aquela em que uma transação bancária é efetuada com sucesso numa propaganda de cartão de crédito. Isso naturalmente não corresponde à realidade, mas as pessoas acreditam que sim, e se frustram. Até porque aquilo que é comprado com o cartão pode ser algo que nada tem a ver com amor e pode ser algo que está muito longe de ser realmente útil pras pessoas que aparecem na cena. É apenas um mecanismo publicitário raso pra estimular o consumo e que mesmo assim, convence as massas.

E na propaganda de margarina, a família está feliz tomando café da manhã, com um tempo que só teriam se acordassem às três da manhã. Isso anularia a alegria que demostram na cena. O que acontece em qualquer família normal, por força das circunstâncias reais, é que estejam pela manhã todos completamente aloprados, já atrasados, não importando o quão cedo tivessem acordado. O banheiro está ocupado, então há mais uma treta por causa disso. A condição financeira da população em geral também é um empecilho, e pouquíssimos tem tanta comida à mesa logo cedo, e a correria matinal está diretamente ligada à necessidade de ter comida para o almoço e para o jantar. Sem contar que o jantar muitas vezes só é possível com a venda do almoço. Há também propagandas de carros sendo vendidos em prestações que parecem tentadoras e que vão enforcar o escasso orçamento dessa família. É o cúmulo da estupidez e da desumanidade pensar em status num mundo como esse, mas o poder midiático consegue controlar essas milhões de mentes fracas, estabelecendo um padrão, que embora não corresponda à maioria da população, e embora as pessoas saibam disso de alguma forma, ainda assim se sentem frustradas caso não obtenham o que a propaganda determinou como condição pra felicidade. Aliás, pra não falar só da sordidez do controle midiático sobre essa questão, vamos deixar muito claro que amor não está relacionado necessariamente à necessidade de você ter um namoradinho e ser feliz pra sempre com ele. Isso é patético, antes de mais nada, porque essas relações muitas vezes têm prazo de validade. E a sordidez vai mais longe ainda quando você lembra que é preciso ter alguma independência financeira pra não cair na cilada de se casar e se dar mal e não poder sair porque depende de um Zezinho qualquer, machista e escroto. Amor tem mais relação com a sua capacidade de controlar o seu destino, na medida do possível. Você muitas vezes não escapa do capitalismo, então tem que lidar com isso sem enlouquecer, e é por isso também que esses bancos asquerosos deitam e rolam na exploração do povo através de financiamentos que tornam as pessoas eternamente inadimplentes. E é por isso que muitas mulheres não mandam o marido às favas pra começarem outra vida. É a porra da dependência financeira. O sujeito trabalha, paga as contas e a mulher que trabalha em casa se esgota até o talo e não tem um puto furado no bolso pra nada. Essa é a tônica de muitos casamentos farsários que duram décadas e que na verdade são consequência de comodismo ou falta de opção, principalmente por parte da mulher. Nesses casos, o contrato do casamento vale muito mais do que o amor. Eu, particularmente, penso no amor, ou na falta dele, de acordo com as circunstâncias de cada dia, e o atribuo àquele momento mágico em que me sinto livre, depois do trabalho, com vinho, baseado e música decente. Com ou sem algum Zezinho da vida por perto. Até porque eles estão por toda parte e sempre tem algum disponível, especialmente nesses tempos de comunicação instantânea. A vantagem disso é que a solidão deixa de ser motivo de medo e passa a ser uma alternativa momentânea e necessária para o bem estar e para a sanidade.”

Numa outra ocasião, a sobrinha perguntou:

“Tia, o que leva um sujeito a ser mesário voluntário numa eleição?”

Tia: “Você já conheceu algum?”

Sobrinha: “Não, mas vi na televisão que isso é possível.”

Tia: “Isso é só pro Estado testar até que ponto as ovelhas do rebanho podem chegar. Quando deveria estar sendo discutido a não obrigatoriedade do voto, e quando as pessoas deveriam estar se perguntando sobre porque não deixar de votar mesmo com o voto obrigatório, surgem propagandas como essa. Entre os mesários que conheci, não havia nenhum que não estivesse deprimido com antecedência. Mas de repente o poder midiático pode fazer mesmo fazer com que exista, porque alguém acreditou que seria jogo se sujeitar a isso. De qualquer maneira é mais fácil acreditar naquilo que vemos com os próprios olhos, como a proibição da maconha, feita por quem quer que você acredite na ressurreição de um carpinteiro, nascido de uma virgem e uma pomba e que até hoje fazem as pessoas comerem ovos de chocolate trazidos por coelhos bípedes numa data específica. O coelho bípede trazendo os ovos, você não vê. Apenas os comerciais que fazem as crianças acreditarem neles para fins comerciais. Para que haja o convencimento de adultos sobre coisas surreais, as estratégias são semelhantes. O caso do mesário voluntário trata de alguém que vai além de acreditar que o Estado existe pra servir o povo, e não que o Estado seja uma doença apresentada como cura.”

Um dia, elas estavam ouvindo música e a sobrinha perguntou:

“Você tem esperança no futuro da humanidade?

A tia: “Ainda tenho alguma esperança, mas não tenho otimismo algum. Parece ser uma espécie que é movida a catástrofes pra que busque caminhos que justifiquem o que entendemos por ‘humano’. As pessoas que estão no poder são homens brancos velhos, e não se preocupam com o longo prazo. Não podemos esperar qualquer atitude positiva de mudança por parte dessa gente. São lacunas em qualquer escala evolutiva. É difícil aceitar que aparentemente só uma desgraça em grande escala pode mudar as coisas, porque nesse caso, teríamos que sobreviver a isso pra ver a mudança esperada. O que não falta é urgência pra que algo seja feito, e atualmente não é por esse caminho que estamos indo. De qualquer forma, toda grande mudança é precedida pelo caos.”

Sobrinha: “Que música é essa que está tocando? Essa moça canta bem!”

Tia: “O nome da banda é Affinity. A música é ‘Night Flight’. Gravaram só um disco, autointitulado, que é maravilhoso. O nome da vocalista é Linda Hoyle, que gravou dois discos solo belíssimos.”

Sobrinha: “Por que isso nunca toca no rádio ou não se torna popular de alguma forma?”

Tia: “Os donos das rádios convencionais não queriam que suas ovelhas tivessem acesso a vários artistas brilhantes que ficaram no anonimato. O consolo é que hoje você pode ter sua rádio pela internet, compartilhando música. De qualquer forma é preciso que alguém queira saber do que se trata, mesmo que por curiosidade.”

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 29/04/2022
Código do texto: T7505859
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