Urubu de pelúcia
Mila Cox já nasceu em revolta contra o machismo e o racismo que via em qualquer homem mais velho e em muitos de seus contemporâneos.
Era ainda pior quando se tratava de pessoas mais jovens que ela, nascidos no século vinte e um e com mentalidade tosca e medieval.
Apesar da obrigação de morrermos menos estúpidos do que nascemos, essa lógica parecia não se aplicar entre muitos jovens, na proporção devida.
Exceção feita a Zimi, seu velho amigo e parceiro musical, esse era um problema recorrente na sociedade.
Conheceram-se através de Sara Cox, prima de Mila, pois Sara e Zimi estudaram jornalismo na mesma classe da faculdade.
Zimi era um exemplo de conduta para Mila Cox.
Ele, tão criticado por uma inadimplência bancária que por décadas pareceu crônica, mas que foi superada por meio do desapego, quando vendeu a casa em que morava, herança de sua avó, para viver de renda, quitar a dívida no banco, comprar uma parte do sítio das Cox e morar numa quitinete alugada em São Paulo.
Mila Cox era baixista e Zimi era baterista, e juntos atendiam pelo nome de Crop Circles.
O sobrinho de Cox veio conversar sobre uma redação que precisava entregar no colégio, sobre sustentabilidade libertária, tema escolhido por ele mesmo, já que o professor passou a tarefa com o tema livre.
Era um tema que o garoto conhecia satisfatoriamente para escrever sobre, porque era algo aplicado por sua tia e por Zimi, especialmente quando eles estiveram em quarentena durante a pandemia, no sítio que tinham em Itapecerica.
Mila Cox desde criança já era tia. E mesmo sabendo que era jovem e aproveitando gloriosamente essa condição, ainda assim era tia.
Ostentava , em sua cabeça, uma posição hierárquica superior, mas não opressora, na relação de parentesco com o rapaz, sobretudo pela necessidade de não permitir que o jovem seguisse a cartilha machista que lamentavelmente ainda era seguida por alguns familiares.
No entanto era preciso ter cuidado para não se colocar naquela posição de soberba que tanto desprezava.
No mesmo dia em que soube do trabalho escolar do sobrinho, resolveu escrever uma música sobre um dia do futuro em que ela estaria mais velha e tocando num festival europeu ao ar livre, numa tarde de sol, bem antes dos shows das novas atrações musicais desse período vindouro.
Essas atrações contemporâneas tocariam à noite.
Ela havia sonhado com isso na noite anterior e gostou do sonho.
Ela e a banda (na verdade era um duo formado por ela e Zimi, e que contava eventualmente com a participação de algum guitarrista em shows ao vivo) estavam escalados como coadjuvantes veteranos para o festival, embora tivessem prestígio de banda ‘cult’ na comunidade indie de então.
Um sonho que lhe renderia viagens que jamais pagariam com um emprego comum de escravo assalariado.
No sonho, sua aceitação entre os indies europeus do futuro, munidos de estrutura para um evento memorável, fariam finalmente com que a vida valesse a pena. A partir daí, gostaria de se tornar um ser inorgânico, um espírito livre.
Em contrapartida, o anonimato entre o grande público na vida acordada também podia ser vantajoso. Poder andar nas ruas sem serem abordados por quase ninguém (pelo menos no que se refere a tocarem em uma banda) era bom.
Na vida real, quando ela ganhava algum dinheiro como copywriter, guardava um terço. pagava as contas com o segundo terço e gastava o resto.
Os festivais europeus do futuro a encontrariam madura e entendendo que o envelhecimento é uma consequência dura e implacável, que demanda a busca de uma trajetória digna, de preferência com algum legado autoral.
Mila Cox fez o trabalho escolar para o sobrinho e ainda não havia escrito uma linha sequer da música a que havia se proposto a fazer.
O sobrinho pediu que ela fizesse o trabalho, pois estava ocupado gravando uma música, como uma monobanda. Alegou que a ideia sobre o trabalho já estava cristalizado em sua mente, mas a música em que trabalhava ainda estava em desenvolvimento.
Ele exercitava tal modalidade há algumas semanas, tendo um single gravado, sob o nome de Cox.
Afirmou que Brian Wilson era futurista quando apostava na longevidade da sua obra, e que isso demandava tudo, principalmente tempo, e ela entendia o porquê.
Para ela, enfatizar o que parece óbvio era um ingrediente na receita de hits.
Uma receita que muitas vezes pode dar errado.
O erro, nesse caso, nada tem a ver com sucesso ou fracasso comercial, mas sim poder ouvir a música anos depois sem ter vergonha de ter gravado.
A consciência da finitude pessoal também é algo que apesar de óbvio, muitas vezes não é assimilado, mencionado e aceito. É algo, que no entanto deve ser levado em consideração caso haja a intenção de criar algo mais duradouro do que o autor.
Mila Cox, que nos primórdios de sua banda, também teve em seu embrião uma fase dela como monobanda.
Ser tia do estudante que ganhou fama de nerd com um trabalho feito por ela era bom.
Ela sabia que o sobrinho realmente tinha conhecimento sobre o conteúdo do trabalho, antes mesmo de ter aceito a incumbência de fazê-lo.
O garoto alegava que exercitaria seu poder de edição numa canção sua que lhe seria bem mais exigente do que escrever sobre uma ideologia que já havia assimilado.
A tia, em troca, prometeu jogar duro na avaliação da música.
Era uma responsabilidade, pois o sobrinho sabia que carregaria aquelas palavras para o resto de sua vida artística.
O que lhe preocupava era saber da importância da dosagem de confiança que se deve imprimir numa empreitada como aquela, e não era o caso de estar abusar dessa confiança naquele momento.
Se a tia tivesse acesso ao rascunho que existia da música até então, saberia quem ele estava tentando plagiar. Havia, portanto, uma parte significativa da música a ser feita.
Ele precisava apenas distorcer o que parecia óbvio com outra influência que fosse obscura a ponto de sua menção como influencia se tornasse exagero, tornando o produto final aceitável no que diz respeito à originalidade.
Tentaria aplicar a fórmula de um hit, mas sua equação para isso era mais complicada do que os padrões de produtores clássicos.
Envolvia camuflar influências, que apesar de soarem óbvias para sua tia, pesando negativamente em seu critério de avaliação.
Mas confiava que se safaria alegando plágio involuntário, na pior das hipóteses.
Ele lembra de ouvir a tia praguejar oa piores horrores sobre os artistas que desprezava e sabia o quão doloroso seria ouvir aquilo sobre sua própria criação.
Ele havia escolhido o nome da família para batizar o projeto, o que também pesaria na avaliação de sua tia.
Acabou por fazer um trabalho satisfatório, mas não escapou da observação de Mila Cox, que comentou que a música parecia uma mistura de Brian Eno com a primeira fase do Ultravox.