O ESPETACULAR CIRCO DOS HORRORES.

A bola de capotão passou pela vidraça, caindo no colo do homem gordo e grisalho que lia o jornal. Ele deu um pulo na poltrona, assustando o gato Mefístoles. -"Malditos pirralhos!" Gritou o homem, se levantando e ajeitando os óculos. O cachorro latiu. O homem saiu para o quintal. O portão trancado. Ele viu dois garotos correndo rua abaixo. Afonsinho olhou pra trás. -"Foi sem querer, seu Ananias." O garoto morava na mansão em frente, no número 208 da rua das Azaléias. -"Não vou devolver a bola, moleque malcriado." A mãe do garoto saiu. -"Afonso Timóteo Rogério de Alcântara Machado, o que você aprontou?" O velho ergueu o indicador. -"Vai pagar pela vidraça ou chamo a polícia." O cão rosnou, como que apoiando o dono. Ananias olhou para os dois Rollys Roice na garagem da família abastada, dona de duas tecelagens no Itaim e de uma.padaria na Moóca. -"Mande consertar a vidraça, vizinho. Coloque o recibo do conserto na caixinha de correios, por favor. Nossas sinceras desculpas." Ananias se deu por satisfeito pois forjaria um recibo polpudo, consertando ele mesmo a vidraça. -"Agradecido minha senhora. Que esse fato lamentável não se repita." Era a segunda vez, em três anos, que falava com aquela mulher de nariz empinado. Sabia que o nome dela era Romualda e lhe desejara boas vindas, na ocasião da mudança da família para a mansão da família do barão Estanislau. Romualda e o esposo Ataxerxes o ignoraram por completo, dando atenção ao vice prefeito. -"Bom dia, novos vizinhos. Sejam bem vindos." O velho Ananias ficou de ar. O velho via mais frequentemente o mordomo, o motorista, a empregada e a governanta. Afonsinho, de onze anos, entrou em casa. A mãe olhou as roupas do único filho. -"Meu Deus, quanto germe e sujeira, meu filho. Vou cortar metade de sua mesada por importunar os vizinhos. Vai já para o banho pois tem aula de etiqueta as duas." Tempo depois, o garoto observava a rua de sua janela. -"A casa do velho é mais legal que a minha. Tem pés de goiaba e de manga, tem cachorro, tem galinheiro, uma horta e um velho balanço." Batidas na porta. A governanta entrou, sisuda. -"Mamãe está brava, Herculana?" A mulher sorriu. -"Creio que não, meu caro. Péssima idéia de jogar bola na rua, você e seus amigos deveriam brincar no salão de festas, como sempre." O garoto se aproximou dela. -"Culpa do Pituca, chutou a bola sobre o muro da casa do velho. Ele e Bruno correram." Uma hora de aula de etiqueta. O lanche da tarde, pontualmente as dezesseis horas. Afonsinho esperou a mãe sair da sala com as amigas Deyse e Daniele. Ele encheu uma sacolinha com profiteroles, pedaços de bolo de yogurte fofinho e uma dezena de mini churros. Saiu, cruzou o jardim e foi até o grande portão da frente. Dois garotos se aproximaram e Afonsinho deu a sacola aos garotos de rua. Eles sorriram e cumprimentaram o garoto loiro e sardento. -"Obrigado, Afonsinho. Treze bolinhas de gude pra você, chapinha." O garoto contornou a mansão. Eugênio lavava o carro. -"Eugênio?! O que quer dizer chapinha?" O motorista olhou para os lados, certificando se estavam sozinhos. A patroa não gostava que a criadagem tivesse muito contato com o garoto. -"Chapinha? Tem a chapinha de cabelo, que as mulheres usam pra alisar, esticar o cabelo. Quando alguém é legal, chamamos de chapinha. É sinônimo de parceiro, entendeu?" Afonsinho sorriu, satisfeito. +"Sou legal, sou chapinha." Uma música alta na rua chamou a atenção dele. O garoto foi para o quarto e abriu a janela. Do segundo andar ele viu a caravana de artistas na rua. -"Respeitáveis cidadãos, o Grande Circo Real acaba de chegar a cidade. Maravilhosa trupe de artistas internacionalmente conhecidos. Sara, a mulher barbada, direto da Rússia. Verdadeira aberração e monstruosa figura. Hermes, o homem que não sente dor. Um gigante romeno da família de Vlad, o conde Drácula. Conga, a Mulher Macaco, direto da África, das savanas do Congo. Ela vai se transformar na frente de todos. Luis, o faquir indiano. A cama de pregos é uma delícia pra ele. Valnei, o homem elástico, um fenômeno da natureza. " Palhaços, malabaristas e anões acompanhavam o carro do circo. Afonsinho assistia a tudo do portão, maravilhado. O céu escureceu e uma grotesca figura bateu no portão, assustando o menino. -"Credo em cruz " Afonsinho caiu no gramado, horrorizado. O homem com a roupa e máscara de macaco tentava escalar o portão. O pseudo macaco batia no peito, satisfeito por assustar o menino. +"Nunca fui num circo, Estela. Deve ser interessante." A cozinheira não deu atenção e continuou a bater o bolo. -"Interessante é mas você não tem idade pra ir. Tem perigos, o espetáculo é de noite e você dorme cedo." O garoto fingiu tristeza. -"Saraus, encontro de portas, simpósio de degustação de vinho aulas de piano e de etiqueta, reuniões com os filhos chatos dos chatos dos de meu pai. Que vida sem emoção e aventuras a minha." A cozinheira sorriu no canto dos lábios pois sabia que aquilo era verdade mas era a vida dele, da alta sociedade. +"Quando fizer dezoito anos poderá ir ao circo, ao parque de diversões, namorar, passear pra onde quiser sem a marcação cerrada de sua mãe." Afonsinho fez sinal positivo com o polegar. -"Mamãe marca mais forte que o Luís Pereira, zagueiro do Palmeiras." No jantar, a família recepcionou o governador do estado. Horas depois, Afonsinho abraçou a governanta m -"Estou com medo da Conta, muito medo." A governanta foi categórica. -"Afonso, já está com onze anos. A babá Lucinda se afastou quando você tinha sete anos. Você já é homenzinho." Ela fechou o livro de histórias infantis e apagou a luz do quarto, deixando um abajur aceso. -"Boa noite, Afonso. Reze ao anjo da guarda e a Monga não vai perturbar." O garoto puxou o edredom. -"É Conga, é o nome certo." A porta do quarto fechada. Afonsinho percebeu, minutos depois, que a mãe entrou e veio beijá-lo. Ele fingiu dormir. O pai veio depois. -"Filho, te amo apesar do pouco tempo que passamos juntos. Vou cancelar uma viagem, talvez semana que vem, pra gente ir ao Ibirapuera andar de bicicleta, comer uns pastéis e jogar bola. Há séculos não faço isso. Meu pai me levava no meu aniversário e era tão bom. Boa noite." Afonsinho engoliu em seco. Tinha outra imagem do pai, sisudo e cheio de compromissos. Ele olhou para baixo da cama. -"Será que a Conga está aqui, debaixo da cama?" Ele virou de lado. Começou a contar carneirinhos. A imagem daquele macaco no portão não saiu da sua mente. A oração do anjinho da guarda fez efeito pois ele dormiu logo. Sonhou que estava no circo, com Pituca e os garotos de rua. A arquibancada cheia de gente. O picadeiro, a lona, as luzes, como ele vira num filme de Chaplin. -"Senhoras e senhores. A incrível criatura da África parado mundo, atenção. Pessoas com coração fraco e medrosas saíam do recinto. Um show apavorante e monstruoso. A transformação da bela Helena em Minha, a mulher macaco." Anunciou o dono do circo. As luzes. A mulher na jaula. O garoto suando frio até que a macaca apareceu. Afonsinho gritou. A governanta entrou no quarto. Os pais do menino vieram, apavorados. Afonsinho dormia. -"Está delirando." Disse a governanta, acalmando os pais. A empregada ficou um pouquinho, fazendo cafuné no garoto até ele se acalmar. No outro dia, Afonsinho não se lembrava do pesadelo mas ficou intrigado ao ver a cama molhada de xixi. De manhã, na escola, soube que Pituca ia com sua turma ao circo. Afonsinho era três anos mais novo e foi barrado pelos colegas. -"Não pode, ainda está fedendo a leite, Afonsinho. Seus pais nunca permitiriam que fosse ao circo. É diversão de pobre." As palavras de Pituca o magoaram. Passou a estréia. As crianças comentando na escola, sobre as atrações do circo. Três dias depois, Afonsinho não via solução. Queria ir ao circo, de qualquer jeito. Pensou nas empregadas. Não, não eram aceitas a aventuras. O motorista, talvez? O pai era austero quanto ao uso dos carros, não ia dar certo. Os garotos de rua! -"Eureka!" Vibrou satisfeito. Tinha mesada suficiente pra pagar os ingressos de seis crianças, tranquilamente. Tinha dinheiro pra doces, balas, pipoca, sorvete e o que mais vendesse no meio do espetáculo. -"Quero ir ao circo, chapinhas." Os dois meninos se olharam. Eles pegavam a sacolinha de doces mas nunca tinha conversado com o gordinho da mansão. -"É sério? Seu motorista te leva! Um táxi te leva. Seus pais te levam." Respondeu o mais alto deles. -"Nada disso. Não ligam pra mim. Quero ir escondido, já sou adulto e não tenho medo. Quero ver a Conga." Os meninos estatelaram os olhos. -"A Conga, mulher macaco?! Credo que medo, chapinha." Afonsinho mostrou três notas de dinheiro aos garotos. -"Eu pago tudo. Pago sorvete e doces a vocês. Amanhã, vou estudar e passar a noite na casa de meu primo Eduardo, pra todos os efeitos. Sairemos da rua do Amarantos, número mil, a seis quadras daqui.

Meu primo vai com a gente, ele tem a minha idade." Afonsinho tinha planejado tudo. -"A gente é de menor, não vendem ingresso pra criança sem os pais. Não temos pais, você vai sem os pais, vamos ter que passar por baixo da lona, na moita." Afonsinho concordou. -"Pagamento adiantado, chapinha. Isso é pra vocês comprarem doces." Os garotos agradeceram. -"Valeu, chapinha. Amanhã às sete da noite, então. Nunca fomos num circo e será nossa primeira vez." Os garotos se foram. Afonsinho estava ansioso. Considerava o primo um bananão mas Eduardo concordou com o plano dele. O primo nunca tinha ido a um circo, como ele. Anoiteceu. O motorista deixou Afonsinho na casa de Eduardo. Eduardo morava com os avós, o que facilitava o plano. A avó foi ao bingo, o avô não ouvia nem enxergava direito, melhor impossível. Os garotos saíram pelo portão do quintal, onde os garotos de rua os aguardavam. A grande avenida. Eduardo e Afonsinho ao lado dos meninos, Zico e Eliomar. Eles falavam alto e riam muito. Afonsinho logo se enturmou. Zico se proclamou protetor de Afonsinho e de Eduardo. -"Somos bons de briga. Fiquem tranquilos." O circo na praça do bairro. As luzes. A lona azul e amarelo. As músicas alegres. A fila na bilheteria. Os vendedores de picolé e caramelo. -"Vamos entrar." Disse Eduardo, eufórico com as mãos cheias de balas. -"Não agora, chapinha. Quando o show já tiver começado, com o circo escuro e a luz só no picadeiro. A gente se arrasta no mato, corre e passa por baixo da lona." Outros garotos, ao lado deles, tinham a mesma intenção. O rapaz do circo de olho neles. Eduardo quase molhou as calças ao ver o cartaz da Conga. -"Eu vou ver, eu sou corajoso." Zico e Eliomar riram. Os garotos resolveram dar uma volta no quarteirão. O tempo passando. O início do espetáculo. As laterais do circo as escuras. Zico deu um sinal aos outros. Eles deitaram na grama e foram se arrastando em direção a lona. O ponto mais escuro. -"Passa." Zico, Eliomar, Eduardo e Afonsinho passaram pela lona. O mágico no palco. +"Uau!" Afonsinho estava entusiasmado. Uma lata de refrigerante vazia caiu em sua cabeça. Os garotos acharam lugares na arquibancada. -"Afonsinho, eu vou pra casa. Não tenho coragem pra ver a Conga." Disse o garoto, chorando. -"Vou sozinho pra casa. É perto." Eduardo deu meia volta e saiu por baixo da lona. Os malabaristas. Os palhaços. Duas duplas sertanejas. O show da Conga, finalmente anunciado. -"Intervalo pra uma pipoca, platéia. A Conga vem aí. Medrosas e medrosos, hora de sair do circo quem não tem coragem." Afonsinho engoliu em seco. Zico estava tremendo. Eliomar nervoso. No escuro, alguém sentou-se ao lado de Afonsinho. O lanterninha passou. Ele olhou atentamente para os garotos. -"Pra fora, invasores. Vocês furaram a lona." Ele pegou Zico e Eliomar pelos braços. Afonsinho se encostou na pessoa a seu lado. -"Ele é meu neto, rapaz. O Carlinhos está comigo." O rapaz do circo se desculpou. O homem abraçou o garoto. -"Ahh?! É sim, o meu avô." Afonsinho reconheceu seu vizinho da frente. O velho sorriu. -"Carlinhos, pare de comer tanto doce." O rapaz do circo foi embora, levando Zico e Eliomar pra fora. O escuro total. A luz na mulher na jaula. Afonsinho tremeu. -"Não tenha medo, é um truque de luzes. O macaco é uma fantasia, amiguinho." Ananias cochichou. O garoto se acalmou. Afonsinho pegou na mão do homem. Fechou os olhos durante a transformação da Conga. A jaula aberta e as pessoas correndo com medo do macaco. Afonsinho se protegeu, abraçado ao homem. -"A Conga foi embora. Você foi valente, garoto." Afonsinho o abraçou. -"Não seria possível sem você do meu lado., Seu Ananias" As luzes do circo acenderam, encerrando o espetáculo da noite. -" Esse ficará sendo nosso segredo, você viu toda a transformação da Conga, com coragem e valentia. Sua família não saberá que furou fila e entrou no circo. Vamos comer um cachorro quente, rapaz?" Afonsinho estava temeroso. -"Não sei. Minha mãe proíbe essas comidas de rua. Eu amo cachorro quente." Ananias apontou para os garotos, na esquina da praça. -"Que acha de chamar seus amigos? Parecem legais. E famintos." Zico e Eliomar ficaram felizes ao ver Afonsinho. -"Uau. Cachorro quente de graça? Aceitamos com prazer." Ananias reconheceu os garotos. -"Esses dois costumam pular meu muro pra roubar mangas. É só tocarem a campainha e pedir as frutas, tudo bem?" Ananias se despediu dos garotos, tempo depois, após acompanhar Afonsinho até a casa de Eduardo. O primo estava admirado com a coragem de Afonsinho. Ele relatou, do seu modo, como era a transformação da Conga. Afonsinho ficou popular na escola, assim que sua coragem no circo se espalhou. Ananias tocou a campanha da mansão. Afonsinho e a mãe acompanharam o mordomo. -"Não vou cobrar pela vidraça pois fiz um novo amigo, Afonsinho. Aqui está sua bola, rapaz." Afonsinho agradeceu. -"Muito obrigado, seu Ananias." O homem sorriu e piscou. -"Tem um balanço lá no quintal, apareça quando quiser. O cachorro é manso, vai gostar de você. " FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 24/04/2022
Reeditado em 24/04/2022
Código do texto: T7502109
Classificação de conteúdo: seguro