LOUCURAS

Diziam que era apenas um brejo, imprestável para casas. O pai, num momento de dificuldade, conseguiu comprar o lote, erguendo aos poucos a casa, a cada tempo um cômodo, um andar. Rua de trabalhadores. Houve uma enchente, dizem, lá nos anos 70. O prefeito abrigou num lote os desabrigados. Eram os mais pobres da rua, assentados em barracos de madeira que se transmutaram em casas de alvenaria, numa arquitetura irregular, em traçado exíguo de terreno. Uma outra rua, anexa, serviu toda ela para nova ocupação, que se regularizaria mais tarde. Ruas de classe trabalhadora em meio a um bairro de classe média.

Concluiu, pela reiteração das narrativas que se somavam, que as mulheres dali enlouquecem. Haveria de saber perfazer a loucura por metro quadrado no espaço urbano. Talvez tudo esteja devidamente organizado em gráficos do IBGE, mas a ela, que por pesar e escrever se acha quase sã, parece-lhe um acaso cruel. A rua estreitada por muitas casas e presa entre morros, sem saída, enviesada, poderia ser compreendida como finito espaço de enclausuramento e, por fim, remeter aos limites da vida.

Uma corre acompanhada de cachorros. Trabalhadora. São todas, aliás. Ela passa roupa, como viu, outro dia. Seu passo é sempre lépido, como se houvesse a determinação da pressa, o tempo fugindo, um destinador lhe gritando aos ouvidos a urgência de cumprir a tarefa que se lhe impôs. Para o quê? Solteira. Os pais faleceram, os irmãos se mudaram. Habita a velha casa com seus fantasmas.

Uma enlouqueceu por volta dos 40 anos. Jogava coisas na rua. Os vizinhos denunciavam preocupação pelo olhar, mas não se ouviam comentários. Talvez cochichassem a portas fechadas, medrosos do desconhecido. No espaço público não. Não sabe se recolheram as coisas jogadas fora para devolução, o que disse o marido. A loucura é coisa de silêncios e tristeza.

Uma outra ouvia chamamentos da igreja. Deveria partir, unir-se aos fiéis que entoavam hinos em algum lugar que só ela ouvia. Lia palavras cruzadas e identificava no desenho a mensagem sagrada, cifrada, que relacionava a versículos bíblicos. Tudo estava ali. Deus falava por meio de linhas horizontais e verticais. Restabelecida da crise, calou-se quanto aos devaneios. Ninguém se achava em condições de compreender, indagando sobre o que havia quando tudo era crise. A loucura deve ser coisa a ser escondida. Ou curada pela boa fé, pela serena prática da religião. Enunciar o desvio de rota seria abrir espaço para que o mal retornasse, achando de vez a brecha do caminho?

Uma outra, sem tratamento, ainda grita palavrões, impropérios, em voz grave e rouca. Também corre, nos gestos rápidos, a voz cortando a rua sem saída, entre morros, no velho brejo agora excessivamente habitado. Corta a noite, quando as televisões se calaram e as luzes são poucas. As janelas não se abrem para o estardalhaço, cúmplices quanto a uma rotina.

Casas sobre casas. Multiplicam-se na medida em que os filhos se casam, chegam netos, genros, noras. Funk. Crianças. Muitos carros estacionados à noite. Lembra quando a rua ainda não tinha energia elétrica e brincavam no final da tarde, os pais junto ao portão, espiando a noite, até que fosse tão noite que ninguém mais pudesse ver. Brincavam de pique-esconde, escondendo-se sempre nos mesmos lugares. A graça estava na capacidade de misturar-se às sombras, ainda que a presença pudesse ser facilmente adivinhada.

Sua voz lembra o destino de todas? Ainda não sabe ao certo seu próprio destino.

Há as que não se casaram, não tiveram filhos, as que ficaram viúvas, todas solitárias e vivazes no assomo das rugas. Há as que falam muito metaforicamente para produzir compreensão, deixando brancos os cabelos, sem cuidados da vaidade. Aposentadas do tempo. Também há as que os pintam de vermelho, escondendo a aceleração do tempo no corpo. E as louras, sem nem um fio fora do lugar, que esbravejam com maridos e filhos silentes. Sem terem jamais deixado a pobreza, tornaram-se defensoras da direita, da moral, dos bons costumes, jogando para debaixo do tapete os momentos em que a vivência de pecados as deixava leves.

Duas parecem ter enveredado pela prostituição, com algum sucesso econômico. Uma casou-se muito jovem com um homem bem mais velho. O sucesso econômico justifica esse e outros silêncios.

Uma tinha um marido que sumiu para nunca mais. Talvez o tenham assassinado, como parece ser opinião corrente. O corpo, o paradeiro, as verdadeiras razões, quem o saberá? A viúva, em seu abandono, optou pela igreja.

Muitas partiram ao longo das décadas. Essa, que retoma a memória, não está mais lá, talvez louca em fuga, despistando a condenação. A velha rua, porém, ainda a habita. Desconfia que muito viver enlouquece.