O CAFEZINHO
O CAFEZINHO
- Cléa Magnani
Sertão do Maranhão, 1950. No boteco do Vau, Rauíldo combinou com Gervásio, o pai de Genilda, que se casaria com ela, se Gervásio lhe desse uns 10 alqueires de terra lá pras bandas do Pará. Trato feito. As terras eram de ninguém mesmo, quem chegasse primeiro e marcasse uma árvore, uma beira de rio, uma serra, já era dono. E se contavam muitas histórias de que seguindo até aquela Serra Pelada, sem mata de floresta, era só passar a enxada no chão e catar o ouro que a terra vomitava, porque já nem cabia mais debaixo do chão. Para Rauíldo, era um acordo interessante: Ganhava terras, que poderia vender depois, e levava Gilvana, morena bonita, e nem precisava mais gastar c’oas quenga do garimpo. Pra Gervásio também era negócio: uma boca a menos pra dar de comer. Gilvana era a mais velha. E os dois mais novos que ela, eram meninos que já poderiam trabalhar na roça ou como pescador nos rios da região. Gilvana? Essa ninguém consultou não. Era acordo de homem, feito no balcão do boteco, entre uma tiquira e muitas outras... E assim se fez. Na manhã seguinte Gilvana amarrou sua trouxa com uma saia, duas blusas e um pente sem 4 dentes. A sandália de couro cru ia no pé mesmo. Chorou ao se despedir dos irmãos, principalmente de Givanilda, a terceira depois dela, que com 16 anos tinha muito medo de se casar num desses acordos que seu pai faria certamente quando chegasse a sua vez. Genilda encostada na porta da casa de barro, enxugou uma lágrima na costa da mão e falou pra filha: - Vai fía! Cumprí teu dixtino! Nun ti ixquéci di nóix viu? E entrou para que não a vissem chorar. A caminhonete inidentificável de Rauíldo sumiu no poeirão da estrada, desaparecendo numa curva, na beira do rio. A vida de Gilvana se tornou um inferno. Rauíldo dava ordens sem perguntar se podia. Se demorasse, a cobria de pancadas. Ele trouxe cinco filhos de outra mulher que o havia abandonado e fugido com um caixeiro viajante, para que Genilda os criasse. Ela já tinha sido mãe três vezes, duas das quais de gêmeos, e em quatro anos, cuidava de 10 crianças. Estava envelhecida, com um dente quebrado na frente, fruto de um soco que Rauíldo lhe dera, e tinha os cabelos desgrenhados. Já não aguentava mais aquela vida. Rauíldo chegou com a caminhonete, bêbado, e gritou: - Mulé! Vê si faix arguma coisa qui preste i côa um café. Maix tem di sê bão, maix bão mermo! Sinão ti quebru toda na pancada!! Gilvana trêmula de ódio, coou o café e colocou uma porção de veneno para ratos na caneca de louça lascada, misturando bem, adoçando do jeito que ele gostava e mandou um dos meninos dar para o pai, que estava sentado na porta da casa, e foi dar banho no filho mais novo. Dalí a pouco o menino gritou: - Mãínha, acuda! U pai caiu i tá babando!! Calmamente Gilvana chegou, recolheu a caneca, colocou outra com café ao lado do corpo, pegou a caneca envenenada, a quebrou numa pedra e mandou que atirassem os cacos no rio. A polícia foi chamada e levou Gilvana presa.
- Alberto Vasconcelos
Filha de desembargador atuante no fórum da capital, Lídice formou-se advogada com o propósito de defender até as últimas consequências as mulheres vítimas dos maus-tratos dos companheiros, os quais ela acompanhou desde a mais tenra idade dentro de casa. O desembargador era o carrasco da sua mãe, mulher simples, semianalfabeta, mas de uma bondade infinita para com todos. Essa maneira de ser do pai, a sua maneira grosseira ao se referir à esposa e por vigiar de perto todas as ações da filha, tolhendo a maior parte delas e sem se importar que ela tomasse conhecimento das suas manobras para tal, fez com que Lídice detestasse os homens. Todos eles pelo simples fato de terem nascidos machos da espécie e, talvez, por conta disso optou pelo homossexualismo na relação afetiva com Carina, ex colega de turma. Ambas atuavam na comarca, sendo Carina auxiliar da promotoria e Lídice, advogada de ofício, nomeada que fora por interferência do pai junto ao governo do Estado, que pretendia com o afastamento da filha, pôr uma cortina sobre o seu comportamento amoroso com uma igual que ele sabia ser motivo de chacota entre os colegas quando da sua ausência. O caso do assassinato tornou-se rumoroso entre os moradores da pequena cidade. Muitos consideravam que Gilvana estava errada, que mulher deve ser submissa ao seu homem e aceitar sem reclamar qualquer coisa vinda dele, afinal existe o ditado árabe que diz: “você deve bater todos os dias na sua mulher, porque se você não sabe por que está batendo, ela sabe porque está apanhando”. Outros, porém consideravam acertada a sua atitude, porque não se admite que o homem trate a esposa na pancada como se ela fosse animal de carga teimoso ou escravo fujão. A Dra. Lídice assumiu o caso desde o primeiro instante e com a tese da legítima defesa própria e de terceiros, visto que o falecido costumava bater nas crianças, principalmente nos enteados. A boa fundamentação teve a concordância da promotoria e o juiz resolveu o processo sem a necessidade de júri popular. Gilvana, que havia sido liberada no mesmo dia da prisão para cuidar das 10 crianças, depois do veredicto com total absolvição, resolveu voltar para a casa do pai. A caminhonete do falecido foi vendida e o dinheiro serviu para comprar mantimentos e as passagens. Gilvana, vistosa como era, chamou a atenção de um senhor de meia idade, ex garimpeiro, que também estava no ônibus. Durante a viagem longa e cansativa, tiveram a oportunidade de conversar e ele, convidou-a para junto com ele montar uma pousada na cidade de Presidente Dutra, onde as crianças teriam escola e eles uma boa vida em comum.
- Aristeu Fatal
A previsão do até então senhor de meia idade desconhecido, na verdade Galdino Canavieiras, foi corretíssima, pois, em Presidente Dutra tudo se confirmou. Ele, homem com uma boa fortuna, fruto da garimpagem, adquiriu uma bela mansão, num bairro mais categorizado da cidade, e lá eles montaram a pousada referida quando conheceu a Gilvana. Logo, as crianças foram matriculadas numa boa escola. Presidente Dutra, com seus quase 20.000 habitantes, situada no centro do estado do Maranhão, era um município progressista, passagem obrigatória a todos que circulavam pela região. Cidade muito movimentada por viajantes de todas as espécies e já começando a ter um comércio pujante, que atraia a população das cidades circunvizinhas. Com isso, a Pousada da Serra, nome dado à mesma pelo casal proprietário, cresceu de maneira espantosa, coisa jamais imaginada por Galdino. Enquanto isso, lá pelos lados do sertão onde viviam Gervásio e família, a vida continuava naquela pasmaceira. Ele sempre no boteco do Vau, Genilda tomando conta dos afazeres da casa, de Givanilda, (lembram-se, a irmã de 16 anos), e seus irmãos. Com tudo o que viu sua irmã passar, Givanilda completando 18 anos, antevendo de o pai querer também “vendê-la”, arrumou sua trouxa, e se mandou para Presidente Dutra, já combinado com Gilvana. Ali iria ela ter oportunidade de trabalhar, continuar a estudar, e até se formar em uma faculdade. Logo depois de sua saída, Gervásio veio a falecer. O crescimento de Presidente Dutra era vertiginoso, a pousada vivia lotada, então Galdino, adquirindo mais um terreno vizinho, na beira do riacho Preguiça, subafluente do Rio Mearim, resolveu montar verdadeiro hotel cinco estrelas, aproveitando grande parte da área ribeirinha, para formar uma enorme represa, a fim de ser utilizada para esportes náuticos, e uma praia artificial. Tendo lido, anos antes, livros que contavam sagas de famílias largando tudo para trás, começando com pequenas atividades, para, mais tarde entrar em grandes investimentos, em lugares ainda não explorados, espelhou-se nessas histórias que nunca lhe saíram da cabeça. E acreditando no futuro turístico da cidade, foi em frente. Gilvana, não querendo ver sua mãe sozinha no sertão, providenciou a vinda de toda família para Presidente Dutra. Juntos, haveria todas as condições deles terem um futuro já definido. Dona Genilda não precisaria mais se preocupar com casa, filhos e outros problemas. Os rapazes teriam oportunidades maiores de empregos, estudos e outras preocupações.
E o cafezinho, sem veneno, continuou a ser servido, à espera de novos acontecimentos...!