A vida e seus meandros

A vida pode ser bem dura para as pessoas sensíveis. Foi a essa conclusão que cheguei depois de saber da morte da Vovó. Era assim que a velha senhora era conhecida entre os vizinhos. Por que motivo, não sei, já que nunca se viu criança em sua casa. Pelo menos, não constava que tivesse netos; e, se os possuía, os moradores mais antigos da rua não os haviam visto.

Vovó morreu num dia cinzento de junho. O céu baixo e nublado envolvia a cidade, parecendo sufocá-la em tristeza. Foi num dia assim que ela deu adeus, em surdina, tão discretamente como havia passado seus últimos anos. De sua juventude, pouco se sabia – seria descendente de uma família importante e teria sido uma jovem bonita e cortejada (conforme se dizia em priscas eras).

Casou-se um dia? Parece que não, mas falava-se que tinha uma filha. De tantos em tantos anos, alguém vinha passar uns dias em sua companhia. Poucos dias, na verdade. Uma personagem tão enigmática quanto ela. A moça – alguém de sua família, por certo - passava a maior parte do tempo na rua, e Vovó continuava sua vidinha de sempre. No quintal, de preferência. Nos períodos de sol, os moradores do edifício ao lado conseguiam vê-la mexendo em suas plantas, cuidando das flores que coloriam o fundo de sua casa.

Não se podia dizer que Vovó fosse grosseira; cumprimentava as pessoas da redondeza, sorria para algumas, convidava às vezes uma rara escolhida para provar um docinho, experimentar alguma fruta de uma de suas árvores. Sim, havia árvores frutíferas em seu quintal, e Vovó parecia ter muito orgulho delas.

Pelo que me contaram,não costumava abrir-se com as pessoas. Sobre sua vida particular, não entrava em pormenores. Seria uma lunática? Uma antissocial?

Só se descobriu mais sobre aquela mulher depois de sua morte: a neta reapareceu (e, apenas naquele momento, a vizinhança soube que se tratava de uma neta) e desenterrou cadernos e mais cadernos em que, com uma letrinha miúda, Vovó relatava a sua história. Um amor proibido, uma filha que havia sido criada por um casal de tios, o escândalo abafado, a reclusão, as mágoas...

E o mais surpreendente: além dos que continham a sua história, a cada dia eram encontrados mais cadernos, com uma produção caprichada. Uma artista escondida naquela casa antiga, fuçando em suas coisas como se alheia do mundo estivesse. Estaria de fato? Ou seria uma pessoa sensível que se havia recolhido em sua concha, numa auto-defesa?

Só depois que morreu, Vovó se escancarou para o mundo.

(Reedição)