Tempo não é dinheiro
Mãe: “Meu filho, você está indo pra onde?”
Filho: “Estou indo pra minha nova casa.”
Mãe: “Você não tem outra casa! Largue de ser ridículo!”
Filho: “Eu não tinha, mas agora eu tenho dezoito anos e terei. Vou morar com a minha tia.”
Mãe: “Com que dinheiro você vai viver?”
Filho: “Sou copywriter, economizei uma grana, ainda que pouca para os padrões burgueses. E minha tia, que pra mim é como irmã mais velha, já tem o apartamento dela, que será dividido comigo. Além disso, fui aprovado na Federal, e se houver algum futuro pra humanidade, eu terei algum tipo de futuro também.”
Mãe:” Seu cretino! Mal agradecido! Hoje é seu aniversário e eu convidei seus amigos pra virem aqui!”
Filho: “Quem vai trazer a maconha?”
Mãe: “Vou ligar pro seu pai e contar tudo que você me falou!”
Filho: “Agora eu não moro mais na casa dele. Já tenho outra. Estava tudo programado desde o ano passado.”
Mãe: “Você vai morar com aquela maloqueira que não acredita em Deus!”
Filho: “Se ela acreditasse, eu preferiria continuar morando aqui mesmo. Você e meu pai são cristãos não praticantes. Tem só a parte ruim desse negócio. Não me pergunte qual é a parte boa, porque não tenho essa resposta. Vejo só hipocrisia. Já que acreditam nesse tipo de coisa, deveriam ter medo de estarem sendo observados pra futuramente serem punidos pela série de pecados descritos na cartilha. É que no fim das contas, nem acho que vocês acreditam nisso de verdade.”
Mãe “O que eu falo pros seus amigos quando chegarem?”
Filho: “Não sei. Não combinei nada com ninguém. A não ser com a minha tia. Combinei que mudaria pra lá hoje.”
Mãe: “Seu maconheiro do inferno!”
Filho: “Fumar maconha é de menos. Tem um desses aí que você convidou pra vir que toma pico no pé. Ele toma o baque no pé pra mãe dele não descobrir através das veias do braço. De repente você pode presenciar isso hoje.”
Mãe: “Meu deus! Qual deles?”
Filho: “Eu não vou cagüetar o cara. Francamente!”
Mãe: “Imagine você morando com aquela doida da minha irmã! Na verdade, não passa de uma criança também! Mas você é ainda mais pirralho que ela!”
Filho: “Será uma vida de consumo racional. Nascemos de famílias que nos tiveram sem levar em conta que não há futuro pra espécie humana no planeta. As gerações anteriores conseguiram foder com tudo de maneira irreversível, e agora estão mortos ou caquéticos, em estado semicomatoso. O mais louco é ver gente fazendo planos de redução de danos para 2050! É de uma bizarrice incrível, mesmo se tratando de governantes.”
Mãe: ”Por falar nisso, cadê o seu título de eleitor?”
Filho: “Está aqui comigo, mas só será usado quando eu precisar acertar contas com a justiça eleitoral.”
Mãe: “Como assim?”
Filho: “Não sou do tipo que vota. Isso é coisa de corno eleitoral. Aquela gente que sabe que está sendo enganada, e sabe que vai continuar sendo enganada, e não só vai votar novamente como pode até mesmo, em alguns casos, fazer propaganda gratuita pra políticos. Eu não consigo encontrar palavras adequadas pra descrever o quão baixo e vil esse tipo de coisa é.”
Mãe: “Seu animal! Você precisa estar em dia com a justiça eleitoral pra fazer qualquer coisa relativa à vida em sociedade!”
Filho: “Eu estarei em dia, ainda que pagando multa pra regularizar a situação. Mas comparecer às urnas e escolher algum daqueles picaretas que ficam piores a cada eleição já é descer baixo demais.”
Mãe: “Você pode simplesmente votar nulo, então!”
Filho: “Minha escolha é a abstenção e sempre será. Se votar mudasse alguma coisa pra melhor, você pode apostar que não seria permitido. A abstenção do voto não tem nada a ver com abstenção política, embora as massas sejam manipuladas pra interpretar dessa forma, sendo assim cúmplices desse circo de horrores, acionando a máquina que nos esmaga dia após dia. Não votar é uma escolha mais do que legítima em meio à falta de alternativas viáveis que se apresentam historicamente em eleições brasileiras. Todos os candidatos estão sempre comprometidos, antes de mais nada, com a manutenção de um sistema corrupto e perverso que se sobrepõe à individualidade desses candidatos, que por sua vez só se esforçam pra garantir ambições pessoais.”
Mãe: “Mas eu e seu pai sentiremos a sua falta!”
Filho: “Não sentirão. Terão mais espaço e menos despesas. Conversaremos através de inúmeros meios de comunicação que existem hoje, e virei visitar vocês, e então nesses dias, logo, lembraremos as razões pelas quais estou saindo. Aí renovaremos a saudade através da vivência de nossas próprias vidas, e então virei visitar novamente, e seguiremos esse ciclo saudável. De qualquer forma, estarei morando na casa de uma parente.”
Mãe: “Você vai se arrepender! Tem muito o que aprender sobre a vida!”
Filho: “Uma pequena parte disso eu aprenderei na faculdade, enquanto estiver lá. O resto aprenderei com a convivência humana em várias esferas, e sei muito sobre o quão terrível é essa parte. O resto é relativo a pagar boletos. Pra isso existe o trabalho, que sei que muitas vezes é escravo, como o do meu pai. A escravidão dele tem um agravante, que é o fato dele pensar que é livre. Quanto a mim, sei que liberdade é um conceito muito abrangente, que requer sacrifícios. As brigas por causa de boletos e chateações que ele carrega pra casa são meu sacrifício atual. Nessa próxima fase, uma parte do sacrifício será ter alguns boletos no meu nome. Como trabalho de forma autônoma, não carregarei chateações inerentes à convivência humana forçada no trabalho. A minha tia é suficientemente antissocial para que em casa não tenhamos esse problema. É uma relação que reduzirá nossos problemas com boletos vindouros, e mesmo dentro da mesma casa, cada um estará vivendo a própria vida, compartilhando cultura e bom gosto musical, algo que, convenhamos, não é possível aqui.”
Mãe: “Nós pagamos a sua escola até hoje!”
Filho: “É um gasto que faz parte do seu planejamento familiar. Estarei em universidade pública e esse gasto cessou. De qualquer maneira, muito obrigado.”
Mãe: “E essa camiseta horrorosa? Foi você quem fez a estampa! Você anda assim na rua sem ser tirado de mendigo?”
Filho: “É que nunca encontrei pra vender uma camiseta do Guided By Voices, essa banda maravilhosa. Conheci através da minha tia, que é sua irmã mais nova e com a qual você nunca aprendeu nada. Por causa da camiseta, eu conheci uma garota mais velha, outro dia, no metrô. Ela me abordou dizendo que gosta da banda. Então por tudo isso, minha tia é a pessoa apropriada pra eu morar junto atualmente. Ela sempre esteve muito à sua frente em qualquer aspecto que possamos abordar. A coleção de discos que ela tem valeu cada centavo que ela diz ter economizado desde que era criança pra comprar. Os livros dela também são foda.”
Mãe: “Você vai levar só isso?”
Filho: “Computador, roupas e bicicleta.”
Mãe: “Sua vida se restringe a isso?”
Filho: “A vida material, sim. Pelas previsões mais lógicas e pelos alertas feitos por gente séria que nunca é ouvida pelas massas, há coisas muito mais importantes pra se prezar, e muitas consequências vindouras por séculos de devastação pra se preocupar, então esses poucos bens materiais, são suficientes por enquanto. Eu lamento profundamente ser obrigado a confessar que sinto falta de dinheiro, mas levando em conta que tem gente que mata por causa disso, não devo me sentir culpado. Até porque não fui quem inventou essa merda toda.”
Mãe: “Você é um moleque cheio de soberba!”
Filho: “Isso é porque você nem imagina quais são meus planos pro futuro!”
Mãe: “Quais são?”
Filho: “Ver o mundo acabar, seja da maneira que for, estar presente pra presenciar o fim da farsa da humanidade, vendo o desespero de quem teme por esse momento, e ver o que realmente acontece depois do fim, sem medo, culpa, recompensa ou castigo.”