OUSADO DESTINO
Tinha como projeto tornar-se escritora de romances cor-de-rosa. Adotaria um pseudônimo, com sobrenome que soaria exótico e possivelmente contribuísse para aderir à estética da narrativa prevista: Seagal, Evans, Stuart. Não parecia tão difícil a empreitada. Lera dezenas, observando a regularidade: falaria de amor, obviamente, com final feliz, é claro.
A mulher deveria ser absolutamente deslumbrante e para isso a descrição deveria concretizar a figura ideal, salpicada aqui e ali, como recheio do texto. Muitas pernas e cabelos. O olhar lânguido, os cílios longos, a boca delicada, as mãos suaves. Mesmo que fosse de origem pobre, não caberiam calos nas mãos, mas talvez isso até adicionasse razão de encantamento, quando ele, Stevens, a segurasse ante a eminência de uma queda.
Deveria de algum modo sobressair-se entre as milhões de mulheres do mundo como sedutoramente singular. Para isso não bastavam apenas bondade, vocação para o trabalho, senso de justiça e um coração romântico, alimentado possivelmente por romances. Que não seriam, certamente, de testemunho, nada que parecesse decolonial, nada que a fizesse efetivamente uma espécie de militante. Para a dose de ingenuidade capaz de seduzir pelo excesso de candura, apenas textos de estética previsível, estável, linear. Uma moça sem crise existencial. Na multidão, bastava que só ela brilhasse ao sol, em função do tom vermelho dos cabelos.
Fiel ao gênero, o homem deveria ser surpreendente, tendo vivido no mundo inteiro, proprietário de imóveis sofisticados, vindo de família humilde, mas cuja persistência incomum o tornara milionário, bilionário, algo que remeta ao incontável das moedas. Tanto esforço por superar as agruras de origem o tornaria obcecado pelo trabalho e pouco afeito ao amor até aquele instante preciso, quando, como um acidente, encontraria a singular figura: um esbarrão, um equívoco. Não poderia ser num ônibus, que tão ilustre personalidade não se aventuraria pela viação Transbraziliana, muito menos uma van Araguaína-Imperatriz. Não se encontrariam no espetinho, um derrubando farinha no outro. Nem na feira à procura de pequis. Ela poderia ser a cantora de voz delicada e sexy no Bar do Shortinho; ele, um latifundiário com problemas em seu jatinho, escolhendo ao acaso lugar para comer, imaginando que, tão famoso, tão exibido em coluna social, pudesse passar despercebido junto ao grupo animado à espera de uma mesa, naquela noite de domingo de dezembro.
Sonegaria as formas como teria enriquecido. Haveria como acumular tanto dinheiro sem exploração? Essa é a parte obscura, jamais prevista como relevante. Não poderia ser um obstáculo à sua determinação de narradora em prosseguir. Seria uma elipse.
Haveria que pensar nos empecilhos, nos pequenos contratempos a demorar a união perfeita. Teria talvez dificuldade com as cenas mais picantes, mas poderia abrir um dos exemplares guardados na parte inferior da estante, fazer paráfrase, e ninguém perceberia a falta de jeito. Uma amiga já a acusara disso: sua escrita de textos amorosos jamais contava com corpos. Para isso o gênero bem servia como exercício: se é história de amor, há que ter corpos e peripécias sensuais.
Ainda que decidida a usar pseudônimo de origem estrangeira, escrever muito, publicar tanto, sem que jamais desconfiassem da autoria, pretendia dar tom mais nativo à história, que se passaria no Araguaia. A moça, em Xambioá, se ocuparia de lavar roupas, banhando-se sob o sol da manhã. Saberia preparar como ninguém um tucunaré. Dançaria forró. Faria Letras em Araguaína, indo à universidade pública no ônibus da prefeitura. Estudaria Inglês, o que tornou possível responder ao comentário engraçadinho de Robert, o que será herói.
Mas talvez fosse mais interessante ainda novo ajuste, o moço nada rico, barqueiro moreno, músculos lustrosos no calor de meio-dia, um sorriso enorme, capoeirista, frequentador das cerimônias de terreiro, filho de um certo orixá, que a autora deveria pesquisar bem, para a devida verossimilhança.
Sem castelos, sem iates, sem jatinhos, porque tudo isso parecia coisa daquela gente que avançava com a soja e o gado, envenenava a paisagem do cerrado com agrotóxico, desprezando tudo e a todos para enriquecer sem olhar nos olhos da gente do lugar.
E então ambos, unidos já pelo destino das águas do rio, se casavam? Ela sem cabelos vermelhos. Ela tão igual a tantas, na paisagem...
As distrações sempre comprometiam o projeto de romance que serviria, afinal, para quê? Que prazer é esse de inventar uma história que ocupe tantas páginas, o tempo curto que ela, professora, teria para dedicar, correndo sério risco de perder-se, esquecendo um personagem ou outro para trás, confundindo paisagens e roupas. Tantos nomes estrangeiros a dar, só mesmo organizando tudo numa lista. E desenhando as ruas e a cidade, que não poderiam ser aqui, mas nesse outro lugar distante, para isso podendo valer-se do Google, na denominação de ruas e lugares. Verossimilhança, mulher!
Tinha, contudo, a obsessão por tentar essa discreta mudança, que amor floresce em todo canto, que o casal estivesse agora no bairro São João. Que não fossem ricos jamais agora nem nunca. Que fossem apenas risos no início da noite, de mãos dadas no Sabor de Mel. Ou acompanhados de perto pelos olhos curiosos do Nazza, amigo deles desde sempre.
Lera muitos romances para seu projeto, desculpa para distrair-se quando a vida lhe parecia excessiva. Como fazia ao assistir a filmes do Steven Seagal, batendo em todos e saindo ileso ao final. Precisava por ordem na casa, ordem no mundo, ordem no caos. Era só seguir o modelo, preenchendo a previsível sintaxe. Por que não conseguia?
Principiou por contar sobre uma mulher que queria ser escritora e lia, para aprender a contar, romances cor-de-rosa. Jamais seria best-seller. Ousado destino.