Sobrinho

Sobrinho: “Tia, por que quando você fuma maconha e bebe vinho, fica quieta ouvindo som enquanto tem gente que toma apenas duas latas de cerveja, perde o controle e dá vexame?”

Tia: “Para esses casos, não se deve apontar a substância como agente causador de distúrbio. Deve se diagnosticar a deficiência individual do humano em questão.

Sobrinho: “Essas pessoas dizem que apenas ficam mais alegres quando bebem!”

Tia: “Não parece ser alegria, apenas a manifestação de um caráter defeituoso mais livre, sob o argumento cretino de que a ingestão de uma substância o permitiu agir de forma estúpida.”

Sobrinho: “Eu acho você genial, mas a minha mãe fala que você é uma drogada encalhada!”

Tia: “Sim, mas para mim ela pergunta frequentemente porque eu não respondo a maioria dos caras que querem sair comigo. Só respondo quando me é conveniente, sem mentiras, ilusões ou hipocrisia. A conveniência está em sair e não muito tempo depois sentir vontade de voltar pra casa e fazer o que realmente gosto, que é ficar sozinha, depois de espairecer um pouco, e lembrar mais uma vez o porquê de eu ser como eu sou. Com a sua mãe isso nunca acontecia. Nunca teve uma alegria verdadeira, porque condicionava a felicidade a outras pessoas, e se essas pessoas presepassem, como era habitual, tudo ia por água abaixo. Ela é uma das influências que eu tive pra não constituir essa farsa da família de propaganda de margarina. Antes dela, os seus avós eram a influência principal, junto com as outras famílias que eu conhecia e que funcionavam nesses moldes. Era um tempo em que nem havia telefone celular, e o único cara que ligava pra ela era seu pai, essa figura patética com quem ela é infeliz e não tem como se livrar, já que depende dele financeiramente, mesmo sendo ele um assalariado de merda que paga aluguel até hoje e pede dinheiro emprestado pra mim quando o negócio fica louco. E a hipocrisia reina por trás de aparências que são inúteis quando encobrem vidas infelizes, que não são apenas as deles, mas também de crianças que nascem deles para perpetuarem essa farsa. Alguns se rebelam, e pagam um preço, especialmente na infância e juventude, antes que possam se libertar e fazerem o que quiserem de suas vidas. Quanto ao fato de ser drogada, eu não sei o que dizer, a não ser sobre o fato de nunca ter ficado viciada no pó de péssima qualidade que meus amigos cheiravam, e nem gostava dessa cerveja vagabunda de milho transgênico que é vendida pro povo através de propagandas sexistas e enganosas. Sou praticamente careta. É só vinho e maconha.”

Sobrinho: “Sim, eu já desprezava suficientemente a ideia de terem tido filhos, sendo as pessoas que são. A ideia de ter nascido nesse país desgraçado é bastante deprimente, mas além disso, ter nascido na casa em que nasci, é surreal.”

Tia: “Não se abale com isso. Eu também odiava a casa em que nasci.”

Sobrinho: “Por que?”

Tia: “Pelos mesmos motivos que você. Uma estrutura familiar retrógrada, patriarcal, machista, burguesa e repugnante. Eu sou a mais nova, pude ver o exemplo da sua mãe, para não o seguir, e tive um professor na época do colégio que fez com que eu entendesse que há outras formas de viver, diferentes dessa em que se tem um futuro pré-estabelecido, moldado de uma forma consagrada como repressora e degradante. Não era um professor da escola. Era o dono da loja de discos que eu frequentava. Nas ruas da cidade, as lojas de discos eram quase tão frequentes quanto padarias ou farmácias, e ali era possível sonhar por alguns instantes. A forma e as razões pelas quais elas acabaram dizem muito sobre o mundo em que vivemos agora, onde nossas mentes são ainda mais manipuladas, sem que possamos sonhar, ainda que por alguns minutos clandestinos. Algumas das músicas que eu gostava já apontavam pra ideia que não havia futuro viável, e outras diziam que para que o futuro viável chegasse, seria preciso mudar o jeito de pensar e de viver. Essas eram consideradas utópicas, e hoje nos fazem pensar sobre o porquê de não termos tentado a utopia quando ainda parecia haver tempo pra isso.”

Sobrinho: “Que música é essa que você está ouvindo?”

Tia: “’No more heroes’, da banda The Stranglers. Essa é a faixa-título do álbum. Vale a pena ouvir todos os discos dessa banda maravilhosa. Alguns discos deles milagrosamente saíram no Brasil quando eu era nova. Hoje, com o streaming, é muito fácil ouvir qualquer coisa, mas os jovens não procuram por esse tipo de coisa. Com seus celulares, em suas bolhas intransponíveis, não desenvolveram a capacidade de ouvir um disco inteiro. Seguem o senso comum, que parece ainda mais perverso do que era antes, num tempo em que quem tinha pelo menos um par de neurônios, temia pelo futuro. Hoje, olhando em retrospecto, é fácil constatar que aquele temor era plenamente justificado. A parte bizarra de filmes e séries sobre zumbis é que são produzidos para um público de jovens zumbis anêmicos que habitam a realidade atual e não tem qualquer direcionamento para o questionamento, para a rebelião ou para algum tipo de diversão verdadeira. As exceções existem, mas pagam o preço, seja pelo bullying ou pela repressão, ou por ambos. Os outros são robozinhos sem alma.”

Sobrinho: “Então o que será das pessoas da minha idade no futuro?”

Tia: “Não sei. Mas cada vez mais é verossímil a ideia de que não vai acontecer nada, porque simplesmente pode não haver humanidade num futuro não muito distante. A insignificância da nossa espécie é inversamente proporcional à importância que os humanos dão a ela. Logicamente isso já está custando caro, e vai ficar pior, pois qualquer intenção de mudança nesse tipo de comportamento é considerada utópica. Mas, individualmente falando, é fundamental que a pessoa morra menos estúpida do que nasceu.”

Sobrinho: "Já conheci gente que não conseguiu!"

Tia: "É bastante frequente. Muitas pessoas são orgulhosas de certas convicções estúpidas, muitas vezes porque são induzidas ao erro. E é mais fácil enganar essa gente do que os convencer de que estão sendo enganados."

Sobrinho: "E essa música que está tocando agora? De quem é?"

Tia: "Esse é o Gil Scott-Heron. Do disco 'Pieces of a man', um clássico. Mas toda a obra dele é legal. Um show dele foi anunciado para o Brasil, os ingressos foram colocados à venda, eu comprei, mas ele morreu antes de vir. Foi triste."

Sobrinho: "Por que minha mãe e meu pai nunca ouvem e nem mesmo conhecem essas coisas?"

Tia: "São idiotas teleguiados. Eles sempre foram assim. A preguiça tem muita culpa nisso. O desprezo pela arte também. Nesse caso, uma coisa está fortemente vinculada à outra."

Sobrinho: "Mas meu pai reclama de trabalhar feito louco pra me sustentar!"

Tia: "Ele deveria ter feito um planejamento familiar decente. Meus pais também. Se fizessem isso, não teríamos nascido. Não sei se isso é bom ou não. Depende do ponto de vista. O sujeito que se propõe a ter filhos tem que assumir as consequências que ele sabe que virão, além do risco de essa nova pessoa não ser exatamente o que ele esperava dela. Basta imaginar o que seria de você se fosse realmente obrigado a ser uma espécie de sucessor do seu pai, com a mesma mentalidade tosca. Que trabalha pra pagar boletos, com um emprego de merda, sem cultura e jogando na cara do filho que ele é o responsável por despesas familiares."

Sobrinho: "É por isso que você não tem filhos?"

Tia: "Se fosse só por isso, já seria um ótimo motivo. Tem a questão financeira. Agora eles chamam a fome de insegurança alimentar. Eu não sujeitaria ninguém a viver em meio a esse tipo de barbárie. E se eu fosse milionária também não teria filhos. Poderia citar também o risco de eu morrer por alguma razão e deixar uma criança órfã. Decidi desde cedo que os motivos de crítica direcionadas a mim, terminariam em mim mesmo assim que eu morresse. Sei que não deixaria que tivessem videogame. Sei que teria que limitar o uso de redes sociais, onde se pratica pecuária eletrônica com humanos. Sei que as influências fora de casa seriam péssimas e não haveria como contê-las. Sei que haveria julgamentos escrotos sobre a minha forma de eventualmente exercer a maternidade. Sei que o processo de gravidez seria terrível pra mim. Sei que seria necessário que houvesse um pai para a criança, e sei que minha paciência com esse sujeito teria um prazo de validade. Eu poderia ficar até depois de amanhã listando motivos. Em vez disso, respondo novamente a pergunta que você fez no início. É por isso que acendo o baseado, abro o vinho e fico de boa ouvindo essas músicas, que me dizem algo que presta.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 03/04/2022
Código do texto: T7486968
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