O Abstinente
Comecei a sentir em meu ser mudanças significativas em função dos esforços que vinha fazendo para eliminar a carne da minha dieta. Confesso que estava ainda inseguro quanto ao meu sucesso nesta empreitada. Depois de passar aquela semana inteira na fazenda de vovô, o maior fornecedor de gado de corte da nossa região tomei, de uma vez por todas, a decisão e jamais experimentei o arrependimento. Não sou daqueles vegetarianos que esnobam a sua condição e vivem a maldizer os trabalhadores que descem dos caminhões frigoríficos encurvados pelas horrendas peças de carne a avermelharem suas camisas com o sangue inocente. Nem escarneço as filas dentro dos supermercados, sentindo-me superior àquelas pessoas. Se possuo minhas razões para não ingerir carnes elas possuem as suas para fazê-lo; por isso as respeito. Percebo até que esta maneira de pensar, comedida e globalizada, brotou-me a partir da minha mudança nos hábitos alimentares.
Contudo, não sou rigoroso. Se mordo um bife ou um pedaço de frango, embora raramente o faça, é para mostrar a mim mesmo que não sou um fanático ou deprimido pelo sentimento da culpa. Os restaurantes vegetarianos são tão raros na minha cidade quanto as estrelas de um amanhecer. São tantas as opções de carnes ou alimentos feitos com ela que muitos se pasmam de verem um abstinente. “O que você come, então”? me perguntam, enigmáticos. Dá vontade de responder: “Há uma grande área de grama na casa onde moro. É que hoje me deu vontade de almoçar fora. Sentia-me solitário”.
Com efeito, somos, não raro, vistos como um boi ou algum extraterrestre.
Como falei, não sou extremado nesse comportamento. Se for convidado para um almoço em que, logicamente, servir-me-ão carnes, não vou rejeitá-las; longe de mim constranger meus anfitriões. Tampouco incomodá-los ao ponto de requerer, em caráter excepcional, uma tigela de alface, agrião e umas cenouras raladas. Sendo assim, comerei o que todos comem. Foi assim numa festa de aniversário na casa de uma família amiga.
Os convidados estavam lá como que contemplando a enorme pira já ardente em brasa. Ao lado, na comprida mesa de madeira, os nacos de carne em bacias de alumínio, tresandando a sal e vinagre que entraram em sua preparação. Ali perto, porções de linguiças, espetos de asas, pães de alho, tudo pronto para ser queimado. Conversávamos. Da garagem provinha o som da música que animava o evento. Coisa simples: a mala do carro erguida e a melodia chegando até nós em moderada altura. Meu olhar concentrava-se nas outras panelas, tampadas. O que será que continham? A conversa estava animada, a cerveja, que nunca falta nesses eventos, gelada e saborosa. As carnes entraram no ponto e começamos a nos servir. Como de praxe em tais eventos, descobri a maionese, o arroz à grega, o molho à campanha e outras guloseimas bastante apetitosas que, para minha sorte, não levavam carne. Servi-me a vontade de tudo e coloque no prato um mero pedacinho de frango.
− O que está acontecendo?! – exclamou espantado o meu amigo – virou vegetariano ou vai se tornar algum monge budista?
– concluiu, me gozando.
− É que não ando lá bem do estômago, ultimamente.
Não sei se convenci. Parece que não, porque não largaram do meu pé. Eu, muito sem graça, ia beliscando, uma linguiça aqui, ali uma asa ou um tasco de carne vermelha. Confesso que essa última, principalmente, não descia a contento pelo fato de já não fazer uso dela por mais de ano. Era-me de sabor acre, tirante a fel e intragável. Devo ter feito cara feia ao ingeri-la, o que me deixou bastante embaraçado. Enfim, confessei minha abstinência. Ao contrário do que imaginei, fui respeitado na minha opção e não percebi, em nenhum deles, mudança de comportamento nem cuidados ao demonstrarem sua preferência pelas carnes. Pelo contrário, elogiaram minha posição e, ao fim do nosso encontro prometeram-me, alguns, pensar na possibilidade de se tornarem também vegetarianos.
− Mas o que o levou a tomar esta atitude? – perguntou o amigo que me convidara.
− Nasci bem próximo a um matadouro e sou de família que negocia com gado. Quando criança escolhia com frequência o rio que circunda nossa fazenda para brincar e nadar no verão. O magarefe era nosso vizinho e amigo de vovô, além de forte comprador do seu gado de corte. Era frequente, em minhas tardes, ver carreiras de bois a desfilar junto ao rio em direção à área onde seriam abatidos, esfolados e, dali, despachados para o corte. Era-nos proibida, a mim e a outro irmão, a ultrapassagem da cerca que separava nossa propriedade do matadouro. Não seria problema se fôssemos brincar naquela área, pois éramos famílias muito amigas. Não queriam é que assistíssemos às cenas de matança dos animais. Mas, você sabe que a curiosidade matou o rato e que crianças fazem exatamente aquilo que lhes proíbem. Assim sendo, convidei, um dia, meu irmão mais novo a bisbilhotar além da cerca.
“A procissão dos animais, seguia, lenta e acabrunhada, por um caminho de madeira, foi o que me chamou a atenção pelo aspecto deprimente em que se encontrava cada rês que sabia caminhar para a morte. O garbo de um ser que vende saúde e força desaparecera completamente. O olhar era de um pavor inenarrável. Iam forçados; era necessário surrá-los para que andassem. Lá na frente, um átrio arredondado como o de um picadeiro. Na entrada deste, o carrasco a espera da vítima, na mão o enorme porrete. O da frente, ao passar pelo portão que leva à entrada é golpeado no crâneo e bambeia. Seus olhos estão vidrados; sua expressão é de puro horror. Se não cai na primeira pancada recebe uma segunda ainda mais forte. O sangue espirra, se esvai por toda a sua cabeça e só então ele desfalece e desaba com todo peso sobre o estrado. O baque ensurdecedor será inesquecível para quem, como eu, assistia a toda cena. O chão de madeira é uma piscina avermelhada, mas o desgraçado ainda não está morto. Neste caso, uma terceira pancada lhe é desferida, com ele já no chão e sem forças; e só então morre. Um ajudante corre então com uma vasilha e recolhe o sangue que não pode ser desperdiçado.
“O animal seguinte, vendo aquela cena dantesca, é presa de um medo e de tal ódio que, como já foi comprovado, vão para a sua corrente sanguínea, a mesma que proverá o sangue que o ser humano utilizará como alimento. Ele não quer esse destino, mas sabe que já está condenado. Os homens sabem e esperam esse tipo de rebeldia. Puxam-no com toda força, quase que o arrastando. Se ele é muito forte e resiste ainda, uma pancada ali mesmo lhe é desferida para que, sem forças, não oponha mais resistência e a mesma cena se repete em seguida. Não consegui conciliar o sono àquela noite e passei adoentado os dois dias seguintes. Para não confessar minha desobediência escondi a razão do meu mal estar, mas dentro de mim a promessa de não ingerir mais carne já estava concretizada. Faltava-me cumpri-la efetivamente. Custou um bocado, mas consegui em fim.
Ao término dessa explanação o ambiente era de consternação e um silêncio lúgubre pervagou no ar. Contudo, brinquei um bocado logo em seguida com meu jeito espirituoso de ser e eles ficaram alegres de novo. Consegui, mesmo sem ter essa intenção, fazer, de alguns daquele grupo, vegetarianos convictos e até hoje eles me agradecem por isso.