Dinossaura herbívora
Diante do circo de horrores que se apresentava em quase tudo que lhe era apresentado, pela mídia e pelas outras pessoas, ela só falava quando solicitada.
E embora fosse, a princípio, econômica em suas falas, uma vez que engrenava, nada podia detê-la.
Isso deliciava a curiosidade dos netos e causava atrito com os filhos, um casal de gêmeos adotivos.
Ainda assim, conversava com os netos sobre qualquer tema que lhe fosse apresentado.
“Vovó, você acredita em vida inteligente fora da Terra?”
Vovó- “A questão não é sobre haver ou não vida inteligente fora da Terra.
A questão é sobre a parcela de vida inteligente que há na Terra não se sobrepor à estupidez vigente que nos aprisiona num estágio civilizatório bastante primitivo.
Há também a questão sobre o porquê de convencionar a humanidade como uma forma inteligente de vida, de um modo geral. É sobre não aprender com experiências anteriores de outras pessoas, e muitas vezes nem mesmo com as próprias experiências, individual ou coletivamente.
O entendimento do que é progresso deveria ser revisto há muito tempo. Vive-se cada vez pior.”
Netinho: “Então porque você teve o papai como filho?”
Vovó: “Ele foi adotado. Ele e sua tia são filhos de uma moça que não tinha condições de criá-los. Eu e seu avô pegamos pra criar, e a moça desapareceu no mundo sem olhar pra trás.”
Netinho: “Então você nunca teve filhos biológicos?”
Vovó: “Não.”
Netinho: “Por que?”
Vovó: “Não suportaria o processo que envolve a gravidez e não tinha a maternidade como um plano na minha vida.”
Netinho: “Mas você sempre cuidou do papai como sendo um filho!”
Vovó: “Claro, ele é meu filho, independentemente de ter saído ou não da minha barriga, e independente de eu ter ou não planejado algo do tipo.”
Netinho: “Vovó, porque você nunca vai à igreja?”
Vovó: “Porque procuro ter a ética como diretriz, e não a religião.”
Netinho: “Me explique isso melhor!”
Vovó: “Não sou articulada o bastante, mas vou tentar explicar através da diferença entre essas duas coisas, com as palavras que agora me ocorrem. Enquanto na ética se faz o que é certo, independentemente do que está escrito, na religião procuram fazer o que está escrito, independentemente de ser certo ou não. O medo e o desespero fazem com que muita gente acredite nesses pastores picaretas que pedem dinheiro na televisão. Deus não existe, mas se existisse, sei que não precisaria de dinheiro, e muito menos o teria inventado. E ele sempre foi retratado de modo que o povo sentisse medo de castigos que ele supostamente aplicaria para o caso de suas regras não serem seguidas.
Mas pense com sua própria cabeça e tire suas próprias conclusões.
Na verdade, o que deveria intrigar as pessoas é o fato de que quem prega essas coisas são pessoas que seriam então duramente castigadas. Entenda que por trás de todo paladino da moral, vive um canalha.”
Netinho: “Vovó, é verdade que você e o vovô nunca foram casados?”
Vovó: “Desde que nos conhecemos, temos cada um a sua própria casa, e passamos tempos juntos numa casa ou na outra, quando consideramos que essa relação é saudável e conveniente para ambos, sem maiores discussões ou lamúrias.”
Netinho: “Nunca se casaram no papel nem na igreja?”
Vovó: “Concordamos desde o início que casamento é uma instituição falida, machista e patriarcal. Algo repugnante demais para incorporar no nosso modo de vida.”
Netinho: “Quem é essa que está cantando?”
Vovozinha: “Kate Bush.”
Netinho: “Vovó, por que você é vegana?”
Vovó: “Porque não acredito que a essa altura ainda seja necessário que matem bichos pra comer. Acredito menos ainda que seja necessário gastar tanto para criarem esses bichos para matá-los.”
Netinho: “Vovó, você acredita em terias da conspiração?”
Vovó: “Em teorias não, mas de vez em quando, nas conspirações propriamente ditas. Não costumo pensar muito nisso, porque prefiro acreditar que muitas bizarrices causadas pela humanidade podem ser atribuídas à estupidez mesmo.”
Netinho: “Quem é esse que está cantando agora?”
Vovozinha: “Todd Hundgren!”
Netinho: ”Ele é muito bom!”