O TORCEDOR

O TORCEDOR

 

João Augusto Sales é frequentador assíduo dos estádios de futebol, torcedor ímpar, vai principalmente quando seu time joga seja lá contra quem for, faça sol ou chova, é sócio, tem carteirinha, associou-se há muito tempo atrás, exibe-a com distinção, esse é um dos seus maiores orgulhos, torce pelo seu time com grande arroubo, com grande entusiasmo, e grande dedicação.

 

Prepara-se 03 dias antes, essa é a sua véspera, a camisa que reclama alguns remendos, recebe sua atenção, sempre colocada sobre o dorço da cadeira, denota o propósito, dá informação, o tênis, surrado, sola gasta, das idas e vindas, é seu parceiro inseparável, e tem valor inestimável, afinal de contas o último título do seu time ele estava com aquela indumentária, e os pés amorosamente agasalhados, logo, havia dado sorte, para que trocar? É supersticioso, e ninguém, ninguém mesmo, consegue dissuadi-lo.

 

Esses itens mencionados e outros apetrechos, e entre eles a imensa bandeira, também dão o sinal, assim arrumados com esmero, são avisos, e D. Célia Flores Sales, sua esposa, para desgosto da mesma, os captam, sabe que no dia azado, e alguns dias que se sucedem após a partida não conta com ele para nada, mormente se seu time ganhar, as comemorações se estendem estrepitosamente, e isso a aborrece, e ela jura que um dia dará jeito.

 

Realmente, João se transforma, e a euforia toma conta da sua pessoa, o celular, agora é o seu radinho de pilha, o verdadeiro ele perdera no dia que ganhara um título, tinha tomado umas e outras, a branquinha o seduzia com força, e ele correspondia aos seus galanteios, e não se sabe se de fato perdera ou esquecera em algum lugar.

 

Essa transformação inicial se dá consciente e inconscientemente, um dos alvos são os cabelos, recebem impiedosas e generosíssimas camadas de tinta, que denunciam o folclórico, o palhaço, que de forma hilária rege parte da grande torcida, e é a alma daquela parte do estádio, a sua torcida, como fala, com grande garbo e vivacidade, é o maestro, o regente daquela orquestra sui generis. Não gosta de torcida organizada, repudia alguns exageros. Optou! E faz belíssima carreira solo.

 

Outra transformação visível reside no seu humor, aquele homem pacato, e até mesmo introvertido de outros dias, agora esbanja irreverências, sem ser insolente, grosseiro, pelo contrário, é uma pessoa de fino trato arrebata os risos da sua plateia, ele é um espetáculo dentro do próprio espetáculo, e seu lugar é cativo, aguardado com ansiedade, todos gostam dele, o mesmo atende também pelo epíteto de Janjão, ou simplesmente João, como carinhosamente todos o chamam, e ele se diverte assimilando a deferência para com ele, e diz não ser merecida, faz charminho, e agradece penhoradamente a todos, e também os trata com mesma dedicação, empenho, delicadeza, retribuindo-os.

 

Outra alomorfia é bem mais drástica, severíssima, e se notabiliza pelo apetite, o glutão inveterado, que come um boi de uma vez, e às vezes pede bis, perde totalmente a voracidade, a avidez, e apenas belisca, e beberica aqui e acolá, reflexos da tensão que o subjuga muitos dias antes das partidas, porém tal atitude não passa em branco, e ele ouve severíssimas admoestações da esposa, que goza na região da fama de falar pelos cotovelos.

 

Vocifera ela:

 

- Assim, você não vai ter forças para torcer como bobo da corte, e arremata:- seu time precisa de você! Uma hora dessas vosmecê estica as canelas, e seu time fica ai sem você, Tchau! Improvisava os eufemismos em grande escala.

 

E não se sabe se é zelo, ironia ou mofa, o certo é que ela faz essas ponderações com grande eloquência, frequentemente, não disfarçando o agastamento, a contrariedade, o inconformismo. Ele faz ouvido de mercador, às vezes dá de ombros, e sai de fininho, nenhuma sílaba, nenhum protesto.

 

João Augusto Sales, de fato passa por uma grande metamorfose, bem antes do dia da partida, há nele, um misto de preocupação e euforia, mais euforia e arrebatamento, já antegozando antecipadamente o resultado positivo, não admite outro, e em hipótese alguma o insucesso, diz xô! Nessas resenhas com os amigos sempre arrisca um placar, e na maioria das vezes é coroado de êxitos, e se gaba, se vangloria, e vez em quando ganha algum, não nessas casas de apostas. Todavia, brincadeira sadia, inocente, entre os amigos.

 

O certo é que, é torcedor símbolo, apaixonado, é reconhecido por todos, até pelos adversários, que o respeitam, pilheriavam com ele, tirando sarro, admira-o, pelo fervor, pela fidelidade, tenacidade, pelo amor sem limites ao seu time do coração, pelas irreverências, pelo entusiasmo, por essa abnegação que salta aos olhos, sei não ser o fanatismo hereditário, porém tal exemplo viera do pai.

Tinha carinho exemplar, quase paternal, e fala desse ou daquele jogador com respeito, com compreensão, com paciência, principalmente se está numa má fase, é emotivo, e vez outra se emociona de verdade, não via desonra.

 

Grandes economias são gastas, pois quando dá, e o bolso atende aos seus desejos, ele bota o pé na estrada, e lá vai ele provar o seu amor, seja lá contra que time for que seu time jogue. Menos no exterior, e essa é a sua vontade, seu sonho, quer fazer uma viagem internacional, a Argentina é destino, respeita o futebol de lá, admira como os gringos jogam: com raça, com garra, empenho, com levidão. E a grande rivalidade que nutrem contra os Brasileiros.

 

Algumas características, vão servir apenas de realce a esse ser aficionado, para que tenham alguma ideia desse torcedor nato. Não atingira 1 metro e meio de altura, dizem 1 metro e 43 cm, o que ele protesta, reclamando alguns centímetros a mais. Rechonchudo, apesar da baixa estatura desafia a balança, e há quem diga que 100 kg, é a marca, porém novos protestos, reclamando para si o tipo esbelto nos 75 kg. Cabeleira abundante, que no dia jogo recebe severos e irresponsáveis galões de tinta nas cores do seu amado do coração, o que acentua ainda mais a figura caricata do palhaço. Óculos, fundo de garrafa lhe confere uma figura ainda mais excêntrica, ímpar, curiosa, engraçado, às vezes comezinho, contudo, imprescindível nos dias de jogos, a sua festa particular.

 

A bermuda, de bolsos larguíssimos, cabe de tudo, principalmente “as latinhas” de sua marca preferida, e a “imagem” da sua devoção, esse show profano. A bermuda jeans vai-lhe aos joelhos, e parece que ele está vestido de calça comprida, também gasta pelo tempo e pelas andanças, e a mesma se segura gentilmente, e se apoia em alguns remendos, sem reclamar, mais parece uma colcha de retalhos, um carro alegórico,

 

Figura cômica, hilária, causa risos de admiração e contentamento, e a não aposentadoria da mesma, digo, a bermuda, fundamenta-se na mesma explicação: superstição. Superstição que ele inclusive não esconde de ninguém, de ninguém mesmo, não há porque envergonhar-se da sua fé!

 

João tem outra paixão, além do seu clube do coração, da sua esposa, e dos seus 06 filhos, sua religião, é devoto ferrenho, tanto que traz a imagem da sua devoção no bolso, principalmente no dia dos jogos, coloca-a no bolso da bermuda, imagem de uns 08 cm, diz, que dá sorte, acredita piamente que o sucesso do seu time é inerente ao seu devotamento, e na hora do aperto, e que seu time está em perigo, em apuros, coloca a mão no bolso da bermuda, segura-a com fé, pronto, o perigo eminente retira-se, e as coisas se acomodam. Ufa!

 

Há uma grande expectativa na cidade, seu time irá disputar o título, depois de vários jogos que o envolveram em climas de apreensão, e de grande exultação pelos resultados obtidos. Porém, chegara o tão sonhado dia. A grande final!

 

Na sua casa, em pese os protestos de D.Célia Flores, e são muitos e são exagerados, ele continua sua produção, grandes bandeirolas nas cores do seu time, dispostas estrategicamente, mais parece o arraiá do João, só falta o sanfoneiro. Tudo estava decorado a esmero e com paixão, para a grande final, e em que pese esse amor incondicional, às vezes não ser retribuído, mas, nada disso arrefece seu ânimo e o seu amor pelo seu time do coração. Bate no peito com orgulho!

 

Os preparativos continuaram, ele se arrumou como de costume, a caráter, faz 03 dias, que não conseguia dormir, só ingerindo alguns líquidos..., e doses generosas da sua branquinha. No dia do jogo, todo paramentado como de costume, não tinha o nariz de palhaço, João é o palhaço, as metonímias e as metáforas andavam lado alado com ele. Tem a graça e a leveza do mesmo, os mesmos comandos, a mesma alegria, os mesmos disparates, a mesma pantomima.

 

João desliga-se de tudo, até da família, nunca mais levou os 02 meninos ao estádio, Pedro de 12 anos e José, de 08 anos, as 04 meninas nunca demonstraram interesse algum, mínimo. São amantes inveteradas das telonas nos cinemas nos shoppings, do namoro, e das praças de alimentação.

 

Explico: essa decisão de não levar mais os filhos, deu-se devido a algumas desordens que ele fora testemunha ocular nos estádios, e nos seus entornos, as selvagerias, entre as torcidas ditas organizadas, acontecimentos infelizes, nada esportivos, e que as mídias, de diferentes plataformas que agem como meios para disseminar as informações, como os jornais, revistas, a televisão, o rádio e a internet, etc., denunciam exaustivamente, e com grande veemência, inclusive pelo mundo afora, como no caso ocorrido no México, como as imagens dantescas do GRENAL (Grêmio X Internacional), do dia 23/03/2022, ganho pelo Internacional, mas que o manteve afastado das finais do campeonato estadual, pois houvera perdido o primeiro jogo em casa pelo elástico placar de 3 X 0, a briga no final, jogadores si agredindo, seguranças barbarizando, distribuindo socos e ponta pés, agressões covardes a pessoas caídas no chão sem poder defender-se, e no final tudo pareceu naturalismo, nenhuma prisão, nenhuma responsabilidade apurada, o Código Penal, estava de mãos atadas, o art. 129 do seu diploma era jogado na lata do lixo, a Constituição Federal de 1988, uma figura decorativa, vendo ser enxovalhado o seu parágrafo 8, do art. 226 [...] “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.”

 

As agressões mostraram e ratificaram mais uma vez a nossa fragilidade emocional, nosso despreparo, a nossa animalidade, desses seres ditos humanos. E é bom que fique registrado que o comportamento abominável em campo gera um efeito cascata, e terminam chegando nas arquibancadas, pois aqueles que deveriam dar exemplo são os primeiros a manchar o espetáculo, são os primeiros a portarem-se de forma inconveniente, irracional, desrespeitando ao Clube, a si mesmo, e aos torcedores.

 

E o seu instinto paterno, tem sido de preservação, e o faz, ao deixar seus filhos em casa, na segurança e proteção amorosa de sua esposa, assim ele vai despreocupado.

 

Voltando ao grande jogo, o juiz apitou a saída, dando início a tão esperada partida de futebol, adversário duríssimo, afinal trata-se de um campeonato importante, e o campeão receberá grandes loiros pela conquista.

 

Ele como sempre, apesar do nervosismo inicial foi relaxando, e começou seu show, com batuta improvisada, rege sua imensa torcida, e no primeiro gol, foi de uma euforia desmedida e destrambelhada, a um estado de loucura propriamente dita e contagiável. No segundo gol, a loucura lhe trouxe todos os demônios para perto , que o possuíram irremediavelmente, e o dominaram, e João ginga, rege, baila, canta, bebe, urra, improvisa o canto desafinado do hino do seu time, mas o faz com orgulho, respeito, amor. Ri, gargalha, a todos beijam, aperta as mãos de velhos conhecidos, faz novas amizades, está possuído por esse fogo sagrado, o amor pelo seu time.

 

Início do segundo tempo, gol, ele não acreditou, ficou apreensivo, mas, não baixou o ânimo, e continuou seu solo. Veio o empate, ficou perplexo, o desespero bateu à porta. Lembrou-se da imagem, colocou a mão dentro do bolso da bermuda, pronto, tudo se resolverá, porém para sua surpresa, seu espanto, perversa surpresa, ela não esta , não compreendia como fora esquecer, logo naquele dia, estava atônito, isso nunca houvera acontecido antes, respondeu a si mesmo, esse monólogo o deixou ainda mais aflito, apreensivo, não obtinha respostas, que apoquentação desmedida, absurda e implacável, impiedosa.

 

Vieram mais gols. Culpou-se! Culpou-se! E por mais que tentasse alijá-la, o fermento da acusação crescia descontroladamente. A culpa lhe cabia, sim, dizia de si para si, ressabiado, agastado, ele era o único culpado, se não tivesse esquecido sua imagem, estaria tudo arranjado, sua Santa é forte, ela dava sorte, era seu talismã.

 

Consumia-se dolorosamente, havia traído seu time, não merecia perdão, era peremptória sua sentença, apesar disso pediu desculpas à sua torcida, aos seus fãs, aos seus filhos, também torcedores do grande time, e de certa forma também à sua esposa. Como podia ter esquecido, como podia, e logo na final, que erro imperdoável, injustificável, merece sim, todas as culpas, todas as labaredas infernais, afligiu-se, chorou, solilóquio duríssimo, cruel, inclemente, indecente, aterrorizador, estava sentado no banco do réu. Condenou-se!

 

Fim de partida, fim de um sonho. Uma garoa fina, deu lugar em frações de segundos a uma chuva torrencial, talvez providencial, contudo eles a ignoraram, formou-se grande procissão dos desesperados, uma grande romaria, bandeiras enroladas ao corpo, peregrinavam, parecia um cortejo fúnebre, e alguns torcedores diziam ouvir o Réquiem de Mozart, outros mais exaltados esbravejavam, queimavam as camisas, as bandeiras, apontavam os dedos em forma de guilhotinas em direção à presidência do clube e a toda sua cúpula. O técnico, esse, o Judas, já está queimando nas labaredas infernais, para sempre. O juiz, também recebeu “menção honrosa”, impropérios impublicáveis, para ele, e sua senhora genitora.

 

Juraram nunca mais pisar os pés no estádio. João, não, ele se enrolou na bandeira, é a sua segunda pele, assim como a camisa que veste briosamente, e chorou sua dor, sua vergonha, sua desdita. Cobrou-se por não estar com a imagem, o seu amuleto, estava abismado, cabisbaixo, incrédulo, por mais que si esforça-se não achava respostas. Acreditava no castigo, merecia!

 

Continuou andando, e um misto de preocupações e interrogações continuaram martelando-o. Havia se esquecido da imagem? Como isso pode acontecer? Havia perdido durante a euforia, em consequência dos bailados, dos gingados? Tudo no mesmo, nenhuma resposta, dor atroz, dúvidas pungentes, labaredas maquiavélicas, horripilantes queimava-o. Ele ardia como brasa!

 

Quantas interrogações lancinantes, brutais, ingratas, giravam na sua cabeça, parece ouvir os gritos de escárnio lhe acusando por ter esquecido a imagem, chamando-o de traidor. Está irremediavelmente perdido, ponderou sem hesitação, que fatalidade, si viu desventurado para sempre, não há salvação para ele, não tinha como. Perdera o título, a felicidade, e a paz!

 

Escuta agora as vozes dos seus próprios pensamentos incisivos, sevos, é seu juiz, o acusam, reprovam o esquecimento, ou pior, a pérfida traição, e lhe mostram a culpa claramente, sim ele é o grande culpado, o verdugo, convenceu-se. Que suplício! Que desdita! Que incognoscível acontecimento, que atrocidade viera lhe acontecer. Estava pasmo.

 

Aflito, pegou um atalho conhecido, andou com passos de gigantes, tinha pressa em sair daquele cenário, contudo levou suas preocupações consigo, não desgrudavam dele, não davam tréguas. Geralmente fazemos isso, tentamos pegar os atalhos da vida, no afã de fugirmos das nossas dores, às vezes das nossas responsabilidades, contudo essas fugas são passageiras, e logo, logo nos vemos novamente diante de nós mesmo, é impossível o indivíduo fugir de si mesmo.

 

Os pensamentos atropelavam-se na sua cabeça ferozmente, dominadores, devastadores, acusadores, horas diziam uma coisa, horas diziam outra, e ia lhe cutucando com a vara curta, bem maior do que ele, minando suas forças, lhe causando um grande tumulto na alma, grande consternação, grande e desmedido alvoroço, infernal, consentâneo, abrindo abismos.

 

Entre vários sentimentos era digno o de comiseração, dava pena vê-lo naquela encruzilhada, aturdido, fora de si. As tintas postas no cabelo nesse ínterim, havia desbotado, quem o visse agora se assustaria, mesmo que fossem seus fãs, e por certo sairiam correndo.

 

Continuou andando, horas parecia que flutuava, horas parecia que andava, continuou andando, a pulga andou com ele atrás da orelha.

Desconfiou da esposa!

Albérico Silva

 

AlbéricoCarvalho
Enviado por AlbéricoCarvalho em 24/03/2022
Reeditado em 21/04/2022
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