Inveja

Bronquite Urbana

Inveja

Meu pai trabalhava na secretaria de uma escola particular, o que felizmente me permitiu cursar um ensino fundamental com todos os privilégios que se dignificavam apenas às crianças nascidas em berço de ouro e de sangue azul. Se misturassem a cor dos seus adjetivos de nobreza, não era comum acabar encontrando algo pegajoso e incômodo como o lodo de suas arrogâncias, que eu havia aprendido a evitar abraçando de vez a invisibilidade que meu status de “plebeu” conferia.

Torna-se engraçado o fato de que, quando criança e até mesmo depois da fase adulta, não percebamos quando uma inocente admiração vai lentamente se entorpecendo em uma inveja miasmática, enquanto montamos uma galeria de cartazes de criminosos culpados pelas coisas que não temos. Era assim a minha vida naquele meio, via coisas que não poderia ter sequer em sonhos e não conseguia retirar tal ânsia do peito.

Minha vida seria melhor se meu pai pudesse me trazer para a escola em um luxuoso automóvel alongado, enquanto eu me servia no banco de trás de um pote de inúmeras guloseimas. Com certeza eu teria muitos amigos se mostrasse a eles inúmeros malabarismos com um ioiô profissional e eu não precisaria mais conversar com as paredes do prédio ou meus amigos imaginários. Seria perfeito se eu pudesse ser elogiado pela minha farda nova, ou pelos sapatos das propagandas dos jornais. Saber que eles também percebiam e apreciavam a minha presença.

Como se não bastasse a mesquinha inveja das posses e virtudes alheias, outra coisa devorava meu coração: se toda a minha vida era regulada por eles, então também lhes cabia a culpa de tamanha escassez de privilégios. Ora, se talvez eles trabalhassem mais, se não gastassem tanto dinheiro com verduras e outras coisas de adulto, certamente sobraria dinheiro nem que fosse para uns brinquedos novos. Essa suposta falta de logística no mundo dos adultos não era páreo pra minha lógica de criança em que todos os problemas se resolvem com o poder da imaginação.

Imaginei o que seria de mim se fosse rico, se tivesse influências, vantagens. Imaginei todos os valores que justificariam meus risos e meus tempos de brincadeira. Dei um preço exorbitantemente caro para a minha satisfação e ainda assim, tudo parecia estar ao alcance de uma decisão, a de recusar deliberadamente a minha realidade.

Tamanha imaginação exigia uma boa quantidade de energia, cujo período de recarga coincidia perfeitamente com o horário do lanche na caantina. Eu sempre sentava na mesa próxima aos outros funcionários, já que era o mais confortável para quem não tinha bagagem necessária para os assuntos burgueses. Uma avalanche de pratos indo ao chão anunciou o final do intervalo.

Duas alunas esgueiraram-se pelo balcão da cantina, adentraram a cozinha e após subir em uma cadeira, deixaram as portas do armário entreabertas, com uma tragédia premeditada para a pobre cozinheira. Enquanto os risos estridentes corriam pelos cacos das louças, uma revolta pairava no meu coração: elas tinham tudo, mas ainda assim, era insuficiente.

Dediquei-me a transpor o espaço exclusivo para funcionários e ajudar a pobre mulher com o trabalho. Apesar do medo que ela possuía de que eu me ferisse, era possível reconhecer em seus olhos um semblante de gratidão e de admiração, como se uma fagulha houvesse iluminado seu dia por completo.

Uma vez encerrado o serviço, era hora de voltar para sala enquanto digeria aquela sensação estranha e leve que formigava pelo meu corpo. Entretanto, um balde de água fria recaiu sobre minha cabeça quando, atrasado 20 minutos para a aula, o inspetor de alunos me interceptou no corredor, ignorando minhas desculpas enquanto me conduzia pelo braço para a sala do diretor.

Meu pai não estava feliz em me ver assim, e o consenso do diretor e da coordenação foram que minhas desculpas não eram o suficiente para escapar dos três dias de suspensão. Aguardei na mesma sala que meu pai, enquanto ele encerrava seu expediente. De cabeça baixa e com os olhos marejados, começava a recordar que nada havia acontecido às alunas travessas e de que o valor dos pratos possivelmente seria descontado do pagamento da pobre mulher. Como eu havia ouvido várias vezes, era um privilégio estar ali, e eu deveria ser grato por isso. Entretanto, aquele episódio arrastou qualquer vestígio de gratidão que poderia repousar no meu íntimo.

Era o fim da tarde quando eu saia da escola com um pai de poucas palavras e olhar severo. Cada traço de envelhecimento que o tempo esboçava em seu rosto era um reflexo do quanto se esforçara o máximo que pudesse para que sua família tivesse a melhor vida possível. Se naquela manhã eu havia descoberto que a culpa era dos meus pais, ele parecia saber disso há anos, mas esquecido de sua total existência. Não dirigi quaisquer olhar ou palavra, temendo que isso despertasse um gatilho de ira que recairia sem clemência perante o filho que quase colocou a perder aquela que poderia ser a oportunidade de ter uma vida melhor.

Já havíamos alcançado as grades dos portões de saída da escola quando passos femininos transpuseram nosso caminho. Em um terno gesto de agradecimento, a cozinheira narrou ao meu pai toda a história, e de como ela estava impressionada em reconhecer tamanha gentileza. Felizmente esse discurso clareou a tempestade de temores que meu pai havia criado, levando-o a ver que estava obtendo sucesso em sua missão paterna, vendo que não tardaria aquele menino a se tornar um homem, ainda mais além que isso, um bom homem.

A mulher se despediu de nós e seguiu para apanhar a condução na próxima parada. Meu pai recostou a velha bicicleta marrom na mureta da escola e se curvou de forma a me encarar. Tentei desvendar o que poderia estar sendo escondido por aquele rosto terno, mas fui surpreendido por um forte abraço. Constrangido, olhei ao redor para os poucos alunos que ainda aguardavam seus motoristas. Temi que lançassem alguma risada de gozação, que prenunciassem o difícil retorno da suspensão, mas o que pude notar é que seus olhos tinham muito do mesmo desejo que rotineiramente habitava os meus. Aquele abraço do meu pai e os olhares das outras crianças que tinham de tudo em excesso, exceto carinho, ensinaram-me que em um mundo onde nada nunca parece ser o suficiente, um pouco de carinho já é o bastante para se ter pelo que ser grato.