Herbáceo
No aniversário do vovô, a neta diz a ele:
“Vovô, você tem sorte por já ter vivido bastante e não ter que se preocupar com o futuro, né?”
O vovô respondeu:
“Nunca me preocupei com o futuro. Sempre temi pelo presente mesmo. Mas nunca na mesma intensidade de hoje em dia.”
Neta: “Sim, mas você não é tão velhinho como os vovôs dos meus amigos. Tem algum medo de morrer?”
Vovô: “Não é medo de morrer, não. Quando essa hora chegar, espero estar sedado com alguma droga que certamente será a melhor que já tomei na vida, e espero não sentir nada. É quase inevitável que sejamos soterrados pelo esquecimento coletivo quando morrermos, não importa o quanto alguém seja autoindulgente, orgulhoso e arrogante. Não sou tão velho quanto os vovôs dos seus amigos porque seu pai nasceu quando eu e sua avó éramos relativamente jovens. Seu pai veio sem o nosso planejamento, concebido num feriado em que ela e eu vacilamos.”
Neta: “Então, consequentemente, eu também não estava nos planos, né?”
Vovô: “Isso é uma outra história. O seu pai a teve com o devido planejamento, felizmente. Inclusive é casado no papel com sua mãe.”
Neta: ‘Você a a vovó não são casados no papel?”
Vovô: “Não. Nunca achamos que isso fosse necessário.”
Neta: “Que música é essa que está tocando?”
Vovô: “Essa é ‘Days’, da banda Television, do segundo álbum deles, ‘Adventure’. Obra prima.”
Neta: “De onde você tirou esse gosto musical tão incrível?”
Vovô: “Provavelmente das lojas de discos que eu frequentava, no centro de São Paulo. Não havia publicações decentes, as rádios eram ruins e não havia internet. Sem contar que também não havia muitos shows internacionais. Era preciso ir atrás de informação com pessoas que eram do ramo. Era uma batalha.”
Neta: “Mas eu sou jovem e tenho um futuro cheio de bizarrices pra enfrentar! Essa é a verdadeira batalha!”
Vovô: “É a mesma sensação que eu tinha quando era jovem. Eu apenas não sabia que as letras das músicas que eu gostava se tornassem realidade. Não a letra dessa que está tocando, especificamente. Mas há outras que previam um futuro bastante sinistro.”
Neta: “Pra quem ficarão seus discos de vinil?”
Vovô: “Fiz um testamento, e você pode apostar, só será lido quando eu morrer. Para que não me matem antes da hora. Não há dinheiro envolvido na herança, seria triste morrer por causa dos discos. Ouço música em streaming desde que isso se tornou possível. Mas a vantagem disso não é a facilidade. É ter a música acessível para quem sabe escolher. De uns anos pra cá foi possível ter acesso a discos que antes eram impossíveis de serem encontrados. Muitas vezes sabíamos que existia, mas o acesso era impossível. Tem gente que acha bonito e compra reedições. Eu jamais faria isso, até por razões financeiras. O que eu não tenho em vinil, ouço na internet mesmo.”
Neta: “A vovó falou que você já apanhou dela de cabo de vassoura nos anos 70 porque era pegador. Isso é verdade?”
Vovô: “Se eu disser que sim, seria autoindulgência, por confirmar que era pegador, e ao mesmo tempo humilhante por admitir ter merecido apanhar de cabo de vassoura.”
Neta: “E se você disser que não?”
Vovô: “Aí eu sei que você dirá pra sua avó que a chamei de mentirosa, e possivelmente apanharia de cabo de vassoura depois de velho.”
Neta: “É verdade que você nunca votou nas eleições?”
Vovô: “Quando as eleições eram feitas com cédulas de papel, eu ia só pra escrever palavrões e anular o voto. Aproveitava e voltava com canetas e isqueiros com o nome de candidatos, que eram riscados com uma chave. Quando a urna passou a ser eletrônica, fui só na primeira vez, pra ver como era. Nunca apoiei nenhum desses vermes repugnantes que querem o poder e fazem alianças inescrupulosas, chegando ao poder e fazendo esse país continuar a várzea que sempre foi e continua sendo. Assumem cargos públicos sabendo da situação calamitosa do Estado e logo estão colocando a culpa pela desgraça em seus antecessores, que antes faziam a mesma coisa. Com isso, a vida da cidadania se deteriora cada vez mais, e logo vem outro eleito em seguida para fazer a mesma coisa novamente. Quando falam em uma ‘nova política’, pode apostar que é mais um picareta querendo sugar dinheiro público. A menos que um eleitor tenha algum tipo de interesse na vitória de um ou outro candidato, trata-se do chamado ‘corno eleitoral’, que às vezes até mesmo faz campanha para aquele em que vota.”
Neta: “Mas todos são vermes repugnantes?”
Vovô: “É algo inerente à condição de um político profissional. Política, qualquer pessoa faz no cotidiano. Mas o que essa gente faz é politicagem. Por questões sistemáticas, e não apenas por ética pessoal, não podem chegar ao poder e simplesmente agir contra o sistema que os colocou lá. Tenho certeza que tanta ganância é fruto do fato de se tratar de pessoas infelizes consigo mesmas, que, nesse caso, tem toda razão para isso. A ‘força do seu voto’ é uma falácia. Obedece apenas aos interesses dos envolvidos na disputa pelos cargos.”
Neta: “Se a vovó não tivesse ficado grávida do meu pai, vocês ainda estariam vivendo juntos?"
Vovô: "Eu era funcionário na livraria dela. Quando nos conhecemos, disse que teria gratidão eterna pelo emprego, que na ocasião, me ajudou muito."
Neta: "Mas isso não é agir por interesse?"
Vovô: "Todas as relações são movidas por algum tipo de interesse."
Neta: "Mas existem aquelas que são movidas pelo amor!"
Vovô: "Não deixa de ser um interesse. Mas eu amo a sua vovozinha."
Neta: "Rolavam muitas tretas no começo, quando você era empregado na livraria?"
Vovô: "Rolou uma outro dia. Saí domingo à tarde, encontrei algumas pessoas, e ela ligou dizendo que ia ter pizza, e por isso eu deveria voltar logo. Tomei só duas pingas de marca boa e um litrão, e ela disse que cheguei bêbado. Nesse dia, quase apanhei de cabo de vassoura. Mas as tretas antigas ficam obscurecidas por fatos mundanos sobre os quais não temos controle, e as tornam esquecíveis e irrelevantes.
Neta: "E essa música que está tocando agora, qual é?"
Vovô: "The Roches. 'Hammond Song'. Clássico!"
Neta:" Nossa, então como eu não conhecia?"
Vovô: "É porque o mainstream corporativo é um lixo, e fica cada vez pior. É preciso que haja interesse por conhecer coisas que não tocarão no rádio e nem serão apresentadas pela mídia."
Neta: "Mas você gostou quando tocou Badfinger no final do Breaking Bad!"
Vovô: "Isso pode acontecer eventualmente. Eles mereciam, depois de tantas desgraças que permearam a trajetória da banda. Fui a um show deles no Ginásio do Ibirapuera. Eu e mais meia dúzia de gatos pingados. Só havia um integrante original no palco, os outros já haviam morrido. Mas pra mim, não deixou de ser histórico."
Neta: "Esqueci de comprar seu presente. Mas lhe darei algum, mesmo com atraso. Gosto de dar presentes úteis, que deixem o presenteado satisfeito. O que você quer ganhar?"
Vovô: "Quero apenas que você vá até sua avó e sugira a ela que chame umas pizzas pra gente. Muita pizza, pra sobrar para o café de amanhã cedo. Isso vai encher meu coração de alegria."