AMIGOS PARA TODOS

“Debrucei-me à janela.O jardim estava silencioso, verde, parado como uma miniatura.Qualquer sinal de assédio desaparecera: desapareceram os inimigos, os cavalos, as fogueiras…Uma manhã serena e luminosa…Os gatos, os meus gatos habituais, olhavam para mim das sebes, do relvado, esperando, em silêncio…”

Frederico Fellini, Giulietta

- Há o perigo de um desastre nuclear e tu ainda me falas em casamentos - vocifera ela, desgrenhada e colada ao telefone sem fios que apita nos momentos mais inoportunos – Rui, por favor baixa o som da televisão.

Na televisão passa um filme de alta pancadaria com o Jason Statham aos murros a uma dúzia de vilões.Um estrépito à mistura com música de acção.

Rui pega no comando, baixa o som, sai da sala para o corredor quando o relógio de pé alto se lembra de começar a fazer soar as badaladas.Na cozinha o micro-ondas apita em sinal de fim de tempo, as pernas de frango já estão quentes e ele ouve a Aretha Franklin a cantar na rádio sintonizada na Smooth FM.

Mas embora os gadgets e o reparo suspenso quase minucioso da caixa de música minúscula no armário de vidro que corre toda a parede do escritório, dos objectos protegidos e vários, a pirâmide verde de malaquite que lhe trazem fugazmente memórias das suas breves passagens por Moçambique, do pato vermelho de porcelana comprado há séculos numa loja que já não existe, “Violinda toca piano”, ele sente a solidão, o desamparo, tem essa consciência a doer a cada passo.

Senta-se ao computador.”Ao menos as redes sociais”Os amigos virtuais.A intimidade forjada mas corrente, a toda a hora, em todo o mundo, de Norte a Sul, à distância de um clique.Sem tempo para respirar.

Há uma jovem estudante em Braga que lhe manda uma mensagem “Estou sozinha no meu quarto e em cuecas.Não me quer vir fazer companhia?” Ele ainda hesita em responder “Menina, já tenho idade para ser seu avô e nem sequer sou capaz de voar como o Peter Pan de Lisboa a Braga”mas é isso que é maravilhoso, não há verdadeiras idades nem distâncias.Entretanto é interpelado por um novo amigo monge e budista que tecla de Buenos Aires na Argentina, América do Sul “A situação na Ucrânia está negra…Que pensa?”Ele sabe que se atrever a ripostar seja o que fôr, o outro lhe atira que ao culpa é do apego e a solução o desapego e tudo começa dentro de nós e na família, já dizia o Freud.

Será que as pessoas com quem se dá, embora imperfeitas e sem perfis bem desenhados não são preferíveis a esta ilusão drogada, este estímulo desenfreado, sempre à disposição da imaginação individual e colectiva?

E ele faz caminhadas com um velho colega e cúmplice de algumas aventuras e muitas guerras e enquanto andam que se fartam e atravessam ruas e avenidas discutem política, cultura e trivialidades.E riem-se das piadas e evocam memórias e cansam-se sem dar por isso.Mas é uma amizade muito limitada que tem e se deve circunscrever aos passeios e exercícios do andar sem parar para ver as montras.Abater a barriga e perder peso.

Ele perde-se na rede, porque agora é a ex senhora enfermeira do Brasil que lhe envia imagens e clips de gatos e gatinhos amorosos e que ele se esforça por retribuir mas que é afastada abruptamente por uma foto de guerra que Peter, o seu amigo do Algarve lhe envia com um comentário amargo “Não tenho medo de guerras, já estive numa de que quase ninguém se lembra, a Colonial” e estende a sua memória cinematográfica a episódios, cenas reais de Angola em plena refrega terrorista.

O telemóvel toca esgrouviado e é o Cláudio, ex colega do ex trabalho de dezenas de anos na famigerada Companhia a perguntar se já lera o artigo do não sei quantos sobre a hipocrisia dos Estados Unidos face aos conflitos mundiais e à Nato.

Mas agora no écran do PC a sua amiga de Santos partilha um hino religioso entoado aos gritos afinadíssimos por um grupo vestido com túnicas até aos pés.Verdadeiramente trepidante!Enquanto isso ele evade-se a pensar nos seus outros amigos, os reais.

O jantar cedo com a Vitória na Cervejaria com o bife, o esparregado e o ovo estrelado.

- Embora.Vamos comer e engordar que nem lontras – disse ela.

E as constatações habituais: de que tempos a tempos, a História se repete, já Hegel vaticinara, e que há um Hitler, um Estaline em todos nós , pronto para acordar e ordenar o genocídio. Que já tínhamos a experiência da guerra, da microguerra no cenário da empresa, o combate desigual travado sem tréguas entre directores e zés ninguéns, entre colegas que assassinavam sem piedade as reputações uns dos outros.Das partes gagas, da comédia no meio de tudo isso.

- Vamos mudar de assunto.Falar da infanta Cristina e do seu marido garanhão e dos escandâlos e dos aumentos incomportáveis da gasolina e das filas intermináveis que se formam e atravacam o trânsito já congestionado- disse ele.

Mas ele agora recebe uma canção de intervenção interpretada pelo Sting notoriamente mais velho, enviado pelo whatsApp por um amigo inglês que vive em Cascais.

E de súbito levanta-se ao ouvir o cônjuge chamar:

- Ò Rui vem cá.Não consigo mudar de canal na televisão.

Levanta-se abruptamente, bate como joelho no rebordo da mesa, pragueja e corre como se fosse tirar o pai da fôrca

- O melhor é desligar tudo e voltar a ligar.

E enquanto a box recomeça ele lembra-se com saudade dos avós que já partiram há anos, das senhoras que também já não fazem parte do rol dos sobreviventes que enalteceram as suas qualidades de trabalho e outras que a modéstia obriga a calar. A Dona Agar, a Dona Madalena, um conjunto distinto de grandes damas com quem ele teve a sorte de se cruzar um dia.

Para onde foi a amizade? Para onde foram os amigos?As pessoas andam desesperadas à procura de alguém inexistente.

Em frente no outro dia do seu ex melhor amigo, à mesa do restaurante, a jantar.Para ultrapassar o comportamento ímpio que acabou com uma amizade de anos, para exercitar a sua capacidade de perdão, querer muito viver sem ressentimentos, ser capaz de transformar um tsunami de desilusão num encontro vulgar entre meros velhos conhecidos.Aprender a aceitar as mudanças.

- Já está.Deixou de estar bloqueado.Mas Querida não era melhor ires deitar-te? Estás com um ar cansado.Eu levo-te o chá à cama.

- Estou exausta.Estou rouca.Fartei-me de gritar e discutir com a Mané?

- A Mané?

- Sim, a minha amiga de infância que vive no Minho, em Viana do Castelo.

- Ah pensei que fosse um alicobata qualquer “virtual”.

A noite desce, envolve-os, toca-os.Os aquecimentos estão acesos.A casa está quente, confortável.Deixa apenas uma música de piano baixa a ouvir-se na aparelhagem. Estende-se no sofá.

Há os retratos no aparador, os quadros expostos, as pratas a brilhar nas mesas e os quebra luzes espalhados pelo espaço e velas acesas.

E ele suspira, sorri sem saber porquê e começa a navegar. No telemóvel.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 13/03/2022
Reeditado em 14/03/2022
Código do texto: T7471949
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