Um Santo Fiscal
Otávio, excelente rapaz, vinha de uma família de classe média e era o quinto filho do casal, tinha cara de padre e se vestia quase como tal, só faltando-lhe pôr a batina; pessoa muito calma, falava baixinho e tinha bons modos, não fumava, não bebia, e nem dizia porra.
Estudioso, passou no concurso para Auditor-Fiscal da Receita Federal e logo coloraram-no para trabalhar na fiscalização do imposto de renda das pessoas físicas, tornou-se assim um dos temíveis leões da Receita Federal.
Era uma época de governo muito miserável e demasiadamente sedento por dinheiro, e que, igualmente aos governos também sedentos de hoje, não nos dava nada em troca, até as professoras do curso fundamental, pobres coitadas, eram obrigadas a declarar e pagar o detestável e injusto imposto de renda.
Aliás, para falar a verdade, somente os entes humanos miseráveis, os tais de assalariados, pagavam e continuam pagando o mesquinho imposto; todos os outros que não eram assalariados driblavam com toda facilidade a voracidade leonina, as cuecas deles que o digam. Leão frouxo, só agredia e continua só agredindo os fracos.
Tornava-se, muito difícil preencher uma declaração do imposto de renda das pessoas físicas naquela época. Tal declaração era feita de forma manual, através de formulários supercomplexos aonde o miserável do contribuinte teria que dar várias informações e fazer vários cálculos para poder chegar a um valor final, que seria de pagar imposto ao famigerado órgão arrecadador tributário, ou consignar na declaração o quanto tal órgão lhe devia de restituição
Então tinha um tal “plantão fiscal” para tirar as dúvidas das pessoas; não obstante, as dúvidas eram sempre todas; de fato as pessoas não sabiam nada, e quando o Fiscal plantonista acabava de explicar o preenchimento, no final do formulário, o contribuinte, com toda a razão, já tinha esquecido do início, e por esse motivo havia muita declaração preenchida com erros, principalmente por aquelas pessoas menos familiarizadas com as regras do mesquinho imposto.
Foi assim que Silvinha, professorinha de vinte e dois anos, moreninha linda, de cabelos pretos e encaracolados, escorridos pelas costas, cometeu a tenebrosa infração de deixar de declarar parte dos rendimentos que obtivera no ano, e tal fato se pode explicar por que para sobreviver com esses salários miseráveis de professores há que se ter mais de uma fonte pagadora, quero dizer, mais de um emprego.
No caso de Silvinha, a pobrezinha trabalhava os três turnos para poder manter-se a si própria e a sua pobre mãe que se encontrava desempregada, igual a milhões de brasileiros.
Ao fazer a maldita declaração do imposto de renda, Silvinha esquecera de incluir... esquecera? o valor de uma das fontes pagadoras, por azar aquela que maior quantia lhe pagou.
O leão, ficou irritado, ele sempre se irritava com as declarações de assalariados, e determinou que Otávio, o leão que chegava junto ao contribuinte para mordê-lo, a fiscalizar a tão linda e jovem Silvinha.
Silvinha chorou muito: primeiro fez charme, depois vestiu-se com uma minissaia que fazia todos babarem ao apreciar tão belas e bem trabalhadas coxas, mas o Leão não caiu na conversa. Depois apelou para a sua situação financeira, demonstrou que em que pese trabalhasse em três escolas, chegasse em casa morta de cansada, seu dinheiro mal dava para pagar o aluguel de uma casinha bem humilde e para alimentação, não fazia nenhum extraordinário, mas não sobrava nada, como poderia ainda pagar mais imposto. Tinha alguma coisa errada que ele, Auditor da Receita, deveria resolver.
Otávio, como um leão manso; quero dizer: muito educado, ponderou que estava apenas fazendo o trabalho dele e que tudo aquilo era determinado por lei, não era invenção dele, era porque devia ser assim, o Congresso Nacional assim havia determinado, o Congresso gostava muito de dinheiro.
No dia aprazado para receber o repugnante Auto de Infração, Silvinha voltou a apelar para o charme. Apareceu na repartição com uma minissaia um tanto menor que a anterior, passou creme nas pernas, os joelhos e o início das coxas pareciam uma peça muito bem polida e a única vontade que aos homens dava era pegar; mas não era carnaval.
Vestia uma blusa branca, transparente, com um sutiã meia taça deixando que todos apreciassem grande parte de seus seios formosos, apenas os mamilos, muito envergonhados, se escondiam. Maquiagem perfeita, batom bem vermelho e o seu melhor toque sensual.
Otávio nem a reconheceu de início. Mas logo deu-lhe um sorriso e a cumprimentou com certa alegria.
Era um auto de infração de um valor relativamente alto para a professorinha pagar, porque além do imposto sobre o valor do rendimento omitido, o desumano leão ainda cobrava juros de mora, correção monetária e multa de ofício. Era um leão miserável! E ainda o é.
Teve cruzada de pernas, teve carinha de carinho, teve beicinho, mas Otávio não se deu por conquistado.
Ai, ninguém sabe se por teatro ou por sentimento veio o choro propriamente dito. Silvinha deixou que copiosas lágrimas corressem em seu rosto mimoso e alcançassem aquele desprezível pedaço de papel a que Otávio chamava de Auto de Infração e pedia para que ela assinasse.
Otávio recolheu para si o auto de infração e pensativo, olhando bem nos olhos de Silvinha, lhe declarou, em voz baixa, e com certa doçura, que não poderia transgredir a lei, ele estava ali para isso, era o trabalho dele e na certa seria punido severamente se não o cumprisse. Respirou e lançou a seguinte proposta:
- A senhora assina o auto de infração da maneira em que se encontra e eu divido com a senhora o encargo mensal dos pagamentos, este valor a senhora pode dividir em até 36 meses.
Silvinha não sabia o que responder. Seria verdade, seria ele tão bom assim, tinha a cara de padre, mas nem em padre se deve confiar hoje em dia, e nem nunca, pensou Silvinha. Aventurou perguntar:
- Mas eu tenho que assinar?
- Sim, a senhora tem que assinar em todas as vias e depois lhe dirijo ao setor de parcelamento.
Não havia mesmo jeito, pensou a professorinha. Assinaria.
Durante os 36 meses Silvinha compareceu a repartição a procura de Otávio, que lhe entregava alegremente a metade do valor da parcela a ser paga naquele dia.
Os colegas da repartição já a tratavam como a namorada do Otávio.
- Lá vem a namorada de Otávio!
Depois dos 36 meses as visitas continuaram a ocorrer. Logo ela passou a ser mais moderada no vestir e eles conversavam bastante. Enfim: Silvinha havia incendiado o desejo de Otávio, justo quando este se encontrava morto de sono.