MENINOS DE PORTO ALEGRE
Ao Menino Deus, de Caetano Veloso. "In memoriam"
De dia, mimetizavam-se na multidão para enganar os predadores. Espalhavam-se pela região central, entre Independência, Alberto Bins, Otávio Rocha, rua Da Praia e Borges de Medeiros. Pululavam no Mercado Central e nas praças Montevidéu e da Alfândega, onde davam trombadas e praticavam pequenos furtos, em geral de alimentos. Uns, mais escolados, aplicavam contos-do-vigário e arrancavam compaixão de pessoas que lhes ofereciam dinheiro ou alguma tarefa remunerada. Esta, quase nunca aceita. A qualquer vacilo, eram pegos e passavam maus pedaços nas mãos da polícia ou de particulares, que os xingavam, espancavam e, não raro, até os estupravam ou matavam. Não havia ECA naquele tempo.
À noite, à medida que o movimento diminuía e escasseavam as possíveis vítimas de trombadas ou descuidos, pois os poucos que por ali transitavam àquela hora estavam mais precavidos, esses meninos e meninas, a maioria deles com idades entre 9 e 16 anos, buscavam algum precário abrigo, sob marquises, nas ruas glaciais dos agostos porto-alegrenses.
De uma feita, eu conversava com Miguel, conhecido como Cabeça, que sonhava ser astronauta. Papo vai, papo vem
. . . De repente ele levantou a mão direita, espalmada, onde segurava, com o polegar, minha carteira!
- Ei, você vai me roubar, é? - perguntei.
- Calma, tio! É só um treino, para não perder a habilidade. Tome aí sua carteira. Não peguei nada. Pode conferir.
- Filho da mãe! - eu disse, insinuando passar-lhe uma rasteira com o pé esquerdo.
Despedimo-nos com uma baita gargalhada! E fui tomar meu ônibus para o Teresópolis, o segundo para completar o trajeto do trabalho até a casa.
Nos fins de semana ou feriados, eu frequentava algum cinema ou teatro no centro. Nessas ocasiões, ao deixar esses locais, altas horas, eu os encontrava empilhados uns sobre os outros, enrolados em velhos e esburacados cobertores, os quais eram praticamente inúteis contra os ventos gelados do Sul. O que os valia mesmo era o calor compartilhado dos corpos. Aí, eles esqueciam pequenas desavenças, e até alguma rusga mais grave, e se irmanavam todos pela sobrevivência.
Catarina, 12 anos, quando crescesse queria cuidar de animais na África. Viu na tevê, numa vitrine de loja, uma reportagem sobre o assunto e ficou apaixonada. Por isso, a escolha. Wladimir, 13 anos, esperava a idade e o tamanho necessários para ser terrorista. Seu pai e sua mãe foram mortos pela polícia, acusados de terrorismo, e ele os queria vingar. Além de perder pai e mãe de uma só vez, ainda sofreu maus-tratos nas mãos de um tio alcoólatra, que foi seu tutor por dois anos, ao fim dos quais optou pela vida nas ruas. "Aqui é ruim, moço, mas na casa do meu tio era muito pior!" - disse-me uma vez.
Tinha o Polaco, moleque muito branquelo, magro e espichado, de orelhas e nariz vermelhos, sempre a espirrar. De impossível diálogo, tamanha a sua desconfiança em relação aos adultos. Entre outros, cujos nomes eu nunca soube, havia o Tição (perguntei-lhe o verdadeiro nome e ele me disse: "Não se alembro. É Tição mesmo!"), um negrinho que usava como isca uma caixa de engraxate. O cliente sentava para engraxar os sapatos, ele os engraxava no capricho, tocando sambinha e tudo, e na hora de receber o pagamento, quando o cliente pegava a carteira para tirar o dinheiro, ele dava o bote e fugia como um corisco, levando a carteira do agora vítima. Perguntei por que fazia aquilo. Ele respondeu:
- Graxa não dá dinheiro. A carteira é mais negócio.
- E se o cliente roubado voltar e te pegar?
- Cada vez que dou um bote, eu mudo de lugar por uns tempos. Vou pro Moinhos de vento, Farrapos, Navegantes. . . Depois de um mês, eu volto. Mas não para a mesma rua.
- E sempre funciona, isso?
- Funciona. O cara vem uns dias, depois desiste. Mas já me pegaram. Algum dedo-duro deu o serviço e o cara veio no dia certinho que eu voltei. Apanhei muito! Fui parar no hospital. Mas é da vida, né?
Tição disse que era comum o cliente mandar lustrar os sapatos, levantar-se e ir embora sem pagar. Outras vezes, pagava menos que o cobrado, como dias atrás, quando cobrou um cruzeiro e o cara meteu a mão num bolsinho, tirou trinta centavos e lhe deu. "Nem carteira o desgraçado tirou!", disse. E havia aqueles que, além de não pagar, ainda o enchiam de cascudos, jurou.
Consciente ou inconscientemente, Tição dava seu recado aos escravistas.
Dia desses, flagrei-me a pensar em onde e como estariam aqueles meninos e meninas, com os quais mantive algum contato, por três anos, ali no miolo da década de 1970. Há bastante tempo, correram boatos, nunca confirmados, de que Catarina foi adotada por uma senhora viúva, que a protegeu e educou até transformá-la numa bailarina de sucesso. Como o nome verdadeiro dela não é Catarina, a gente não tem como checar a veracidade da informação. Outro boato dá conta de que o Polaco morreu de pneumonia numa cela de penitenciária, aos 20 anos. De Miguel, o Cabeça, tive notícia e ela é bem triste, mas poética.
Disseram-me (a parece que saiu em jornal e tudo) que ele, cansado ser preso, fugir e ser preso de novo, resolveu subir ao alto da chaminé do Gasômetro. Lá, abriu bem os braços e lançou-se, passarinho contra o azul, indo estatelar-se à beira do Guaíba. Os que testemunharam a cena não entenderam nada. Eu, que conhecia o seu sonho, ao saber do ocorrido, entendi tudinho. Para encerrar uma vida de misérias e humilhações, nosso Miguel, anjo sem asas, escolheu, como último ato, viver a sensação de um astronauta solto no espaço! Ainda que por ínfimos segundos.