O Cérebro Protegido
João sempre foi apaixonado pelo conhecimento. Quando pequeno se interessava em descobrir a razão da existência e funcionalidade das coisas, das mais simples, como o porquê da saliva na boca, até as mais complexas, como a razão da existência da morte.
Cresceu consumindo todo tipo de conhecimento possível, desde que fosse útil. O interesse pelo conhecimento era abrangente e englobava tudo. Estudava do comportamento humano aos mistérios do universo.
Os pais de João eram interessados pelo saber, sendo que vez ou outra, lhe alertava para o que poderia ser fonte de conhecimento, diferenciando daquilo que seria apenas uma passagem para o quarto da fantasia alienante.
Seus pais não poderiam ser classificados como intelectuais de formação, mas eram com certeza, aptos a diferenciar fantasia de realidade. Por isso, cresceu com a ideia impregnada em sua consciência de que os maiores gênios poderiam ser de alguma forma confundidos, se a todo tempo, não estivessem alertas para isso.
O amor pelo conhecimento era imenso. Tanto quanto a preocupação em não ser confundido por ideias tolas que o levassem a reflexões tolas e o fizessem regredir em seu conhecimento.
Gostava de conversar com pessoas em que o pensamento e o tempo, as havia lapidado reflexões e visões da realidade, mais condizentes com essa. Os resultados de suas reflexões, eram joias de grande valor.
Certo dia observou um senhor ensinando a sua neta algo que chamou sua atenção:
- Quando pedir a Deus, não faça gritando, pois ele não é surdo. Peça com a mente aberta, refletindo sempre e se distanciando de ideias tolas. Se acredita que Deus é onisciente, não há como enganá-lo ou confundi-lo. Se acredita que Ele é onipotente, não há limites para tornar o impossível, acessível. Se acredita ainda que Ele é onipresente, não há necessidade de gritar por sua presença ou para que a escute, pois por mais balbuciado que seja o pedido, Ele irá lhe ouvir.
Aquela reflexão o fez ter interesse em conversar com aquele senhor. Demonstrava sabedoria em seu pensamento.
Passou a visitar aquele senhor e a trocar conhecimentos com o mesmo. Para João, uma boa conversa era sempre uma atividade, um momento de troca.
João e Raimundo, passaram a trocar conhecimentos em alguns dias a cada mês. João se sentia satisfeito com isso.
Um dia qualquer, seu Raimundo deixou de existir no mundo físico e passa a existir nas lembranças de poucos como João, seu amigo de conversa, que lembra de um conselho recebido:
- Ao ir conversar com quem não rega suas reflexões com ideias enraizadas com realidade, é melhor deixar o cérebro guardado e protegido, para que não se contamine de ilusões inúteis.
Essa reflexão o martelava sempre, tanto que procurou ainda mais proteger o universo de seu pensamento racional.
Seu objetivo sempre foi o conhecimento, e na busca do conhecer, as vezes se misturava nas reflexões ilusórias dos outros. Bem sabia, que todos regava suas reflexões com o que verdadeiramente importava para cada um.
O conhecimento era descrito em abundância apenas naquilo que fluía nas redes sociais, e no querer saber da rotina de celebridades elevadas a estrelas pelas redes sociais ou pela mídia ansiosa em ditar valores e comportamentos, ou ainda pelos canais de Streaming. O conhecer se confundia com o entretenimento.
Sabia que o verdadeiro conhecimento era de fato desejado e alcançado por poucos.
Com a precaução de não ser contaminado com a tolice do mundo das ilusões alienantes, passou a guardar seu cérebro em um cofre bem seguro, toda vez que saia de casa. Foi a única forma que encontrou para preservar sua racionalidade:
- Assim preservo extensas áreas de meu cérebro para serem ocupadas com o que realmente importa.
Passou a ter esse comportamento toda vez em que saia de casa. Contudo, na medida em que se negava a compartilhar reflexões racionais verdadeiras, contribuía com o retrocesso racional da sociedade e de si mesmo.
Quando saia sem o cérebro, para não contaminá-lo, esquecia-se que a cavidade craniana desocupada era muito rapidamente preenchida com as bobagens do mundo:
- Percebo belezas e distrações que não percebia anteriormente – dizia as vezes.
Certa vez, ao chegar em casa, de vezes cada vez mais frequentes que saia, não colocou o cérebro no lugar do qual nunca deveria ter saído. Já não havia espaço e estava se formando um novo cérebro naquela cavidade desocupada, nutrido por um mar de bobagens.
Passou a fazer parte de grupinhos descolados, que passava a ficar cada vez mais interessantes à medida em que seu cérebro novo crescia.
Não lembrava mais que em outro momento, havia possuído outro cérebro. Contentava-se com o que tinha e achava que o tinha desde sempre.
Ao olhar para a quantidade de coisas que havia em sua casa, que para ele agora eram estranhas, resolveu mexer em muitas delas, e descobriu o cofre onde havia guardado seu primeiro cérebro, aquele racionalmente lapidado.
Mexeu daqui e dali, virou de ponta cabeça, mas nada, não abria e o mesmo não sabia mais quais eram as combinações para abri-lo. Então, resolve seguir a máxima reflexão alcançada naquele momento e passa a atirar o cofre no chão. Após muito insistir e com a ajuda da gravidade, consegue romper o obstáculo e bem perplexo, percebe que dentro do cofre havia um cérebro se despedaçando, e à medida que se desintegrava em milhares de partes, percebia a imensa quantidade de conhecimento que brotava dos pedaços do mesmo:
- Puxa, não imaginava que coubesse tanta coisa em um desses – refletiu João.
Foi despertando interesse em conhecer tudo aquilo que estava ali, e não obstante, na medida que conhecia, o novo conhecimento útil expulsava o inútil que havia se acumulado e construído seu novo cérebro. Demorou dias, mas ao final possuía todo o conhecimento do cérebro anterior e novas reflexões. Racionalmente afirmava:
- O conhecimento deve ser compartilhado, sem medos que possa ser contaminado pela ignorância, pois é justamente o acesso ao conhecimento verdadeiro, que se pode expulsar a ignorância da cabeça das pessoas, sem descartar o cérebro que habita ali.
Então, não havia mais o receio de contaminação de seu pensamento, de seu conhecimento. O que havia agora era a necessidade de compartilhamento com todos os cérebros possíveis:
- O conhecimento não pode ser guardado a sete chaves, pois a única forma de preservá-lo é espalhando-o pelo mundo, em cada cabeça que carrega um cérebro racional - Dizia.