"La Poderosa"

04.02.22

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Troquei de motocicleta no ano passado. Agora estou com uma BMW, virei “coxinha” como dizem. Tinha antes uma Yamaha XT660R, “meiota” como é mais conhecida, apelidada assim por ser a moto de bandido e da polícia.

Dei o nome de “La Poderosa” para a nova máquina, o mesmo da do filme Diário de Motocicleta. Mas, sem qualquer conotação politica, ela é poderosa mesmo, e bonita. Era o meu sonho de consumo, e apareceu a oportunidade da troca, mesmo assumindo diferença de valor a mais para obtê-la, que financiei. Mais vale um gosto que um milhão ainda mais nesta fase da vida, pois temos mais passado que futuro e sem tempo a perder.

Com ela fui dias atrás visitar os meus filhos, ver a minha netinha filha do meu filho mais novo e a minha irmã em São Paulo. O trajeto é de 700 km de distância de Florianópolis com mais de sete horas de duração, três paradas para abastecer e nove pedágios. A viagem foi ótima, em dia ensolarado e tórrido, fazendo-me transpirar barbaramente ao longo do percurso com as roupas para proteção, pesadas e quentes, mas necessárias que usava. Uma “mototerapia” é para mim.

“La Poderosa” tem cerca de 170 cavalos e minha mulher brinca dizendo que tenho um haras no meio das pernas. De fato, tem muita potência e segurança, freios que não travam, controle de tração, não vibra e de tocada suave e confortável. Enfim é uma BMW, com tremenda diferença de equipamento e tecnologia das outras que tive. Os alemães são quase perfeitos com as suas máquinas. Apaixonei-me por ela.

A antiga, a “Magrela”, era ótima também e boa de pilotar, mas por ser monocilíndrica, vibrava muito – minha mão direita, a do acelerador, chegava a ficar dormente por um bom tempo mesmo depois de terminada a jornada. Também, os freios e potência para as acelerações de ultrapassagens e frenagens de segurança, em certas situações eram insuficientes. Tenho saudades dela, gostava da “Magrela” e tivemos ótimas aventuras e sufocos juntos.

Passei a semana na capital paulista, matei as saudades e defini a volta no domingo daquela semana em família. A chuva, necessária – o calor estava insuportável, começou na sexta feira e se prolongou pelo sábado. Acompanhava a previsão do tempo e choveria na região Sudeste e Sul do país até a terça feira seguinte.

Motociclista não escolhe o tempo, vai com qualquer um. Mas, viajar com chuva intermitente por longas sete, oito horas é bem estressante e cansativo. Seria um teste para a “La Poderosa” e para mim é claro.

Preparei-me no sábado, fiz a mala e a carreguei no bagageiro da máquina. Estava hospedado na casa do meu filho mais velho. Minha nora fez um jantar de despedida ótimo - ela cozinha muito bem e está grávida de sete meses. A previsão é para o final de março ou início de abril o nascimento da Martina, ou Martinica como carinhosamente a chamo. Há uma aposta: eu falo que será na data do meu aniversário, 20 de março; a faxineira deles, no dia 25 de março, dia do dela. Meu pressentimento diz que será no meu. Veremos.

Choveu toda a noite de sábado e madrugada de domingo. Acordei às quatro horas da manhã e me vesti, mais parecendo um astronauta de tanta roupa, proteção e capa de chuva que usava, ou como o boneco Michelin, aquele todo de pneus.

Às cinco horas, liguei a moto e iniciei a viagem. Os pingos finos e densos da chuva batiam na viseira do meu capacete implacavelmente enquanto saía da capital paulista. Entrei na estrada, a Regis Bittencourt, famosa pelos seus frequentes acidentes e longos engarrafamentos. Estava quase vazia naquele horário, poucos caminhões e esporadicamente alguns carros.

Os caminhões emanavam um spray fino formando um nevoeiro de vapor de água, impedindo a visualização do trecho à frente da estrada, e com os faróis dos carros no sentido contrario ofuscando-me, tornava essa manobra perigosa. Mas, como eram poucos e eu em maior velocidade que a deles, seguia com cuidado e atenção passando-os. “La Poderosa” se comportava magnificamente bem, dando-me tranquilidade.

Então, a viseira começou a embaçar e a reter os pingos de água, tornando a visão complicada, pois tinha que movimentar minha cabeça para os lados, para limpa-la com o vento. A chuva estava forte e essa ação foi ineficaz. Comecei a pouco enxergar.

Neste momento, havia à minha frente um caminhão ultrapassando outro. Só via o seu vulto envolto no vapor provocado pelas suas rodas como uma cortina líquida intransponível . A situação começou a ficar perigosa. Fiquei tenso. Não via absolutamente nada, e sem a profundidade necessária para prever qualquer ação de cautela que pudesse resultar em acidente. Preocupou-me, pois não tinha o que fazer. Seguia por intuição. Em alguns momentos conseguia ver as faixas demarcatórias no asfalto. Reduzi a minha velocidade, ficando mais atrás, fugindo do rastro d’água das carretas a minha frente.

O caminhão ultrapassou o outro e consegui ver um pouco melhor o asfalto com suas linhas brancas laterais mostrando-me o corredor escuro sem fim da estrada. Teria agora que ultrapassar este caminhão que corria quase que na minha velocidade .

Comecei a passá-lo e a nuvem envolveu-me completamente cegando-me. Pensei:

- Tem que levar La Poderosa na ponta dos dedos Fernandinho, vai com calma, segue assim ao lado dele lhe mostrando a estrada.

A carreta ia indiferente ao meu problema mantendo a sua toada tranquila. Eu intranquilo e tenso ao seu lado, mantendo o sangue frio .

Levantei a viseira do capacete e segui com ela semiaberta tentado enxergar, meus óculos começaram a ficar com pingos. A chuva fustigava o meu rosto impedindo-me de andar a mais de cem quilômetros horários de velocidade, pois acima dela, os pingos se tornavam como finas agulhas que furavam o meu rosto. Não tinha alternativa: teria que ultrapassá-lo para poder parar e resolver a situação critica que enfrentava. Se reduzisse a velocidade deixando-os passar, pois havia o outro atrás, poderia causar um acidente.

Seguimos parelhos por um bom trecho, tendo ele como o guia de um cego, até que uma subida fez com que diminuísse a sua marcha. Finalmente o ultrapassei. Suspirei aliviado e me descontraí, pois em todo esse percurso mantive os dentes serrados, quase travados de tensão. Talvez tenha sido a pior situação de risco que passei até hoje viajando de motocicleta, pois poderia ter caído, ou saído da pista, ou ser atropelado pelos caminhões ou carros, pelo voo cego que fiz. A morte me acompanhou lado a lado naquele momento, com certeza.

“La Poderosa” se manteve segura em todo esse embate, como um corcel adestrado, mal sabendo da situação sufocante que passamos naquela ultrapassagem. E teríamos mais momentos com este, pois a viagem estava no seu inicio. Que teste, hein?

Por precaução, continuei com a viseira semiaberta por mais alguns quilômetros até parar no primeiro posto de combustível para limpá-la, comprando um desembaçador de para brisas. Funcionou. A visibilidade ficou quase que perfeita.

Animado e aliviado, montei na minha companheira e arrancamos excitados para os novos desafios que a nossa aventura ainda iria nos apresentar. Senti-me vitorioso, momentaneamente.

Tivemos outras situações semelhantes durante toda a viagem, mas não tão ruim quanto esta que passamos, pois o dia clareou, a chuva amainou e pudemos continuar com um pouco mais de tranquilidade e segurança. E visibilidade!

Passamos no teste. “La Poderosa” com louvor me trouxe são e salvo sem qualquer escorregadela. Perfeita como os alemães, ou quase!

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 04/02/2022
Reeditado em 04/02/2022
Código do texto: T7444775
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