EXTRA FORTE

Valdemar assustou-se ao descobrir que havia passado mais de uma hora transcrevendo sem interrupções uma aula gravada do curso de especialização. Antes, seria incapaz de se manter na mesma tarefa por mais de três minutos sem pausar o vídeo para ouvir música, comer alguma coisa, conversar com a esposa ou se entregar a pensamentos rasos e aleatórios. Sentiu-se ainda mais espantado ao constatar que, além da transcrição crua, conseguira converter sem dificuldade a linguagem coloquial do professor em períodos ao mesmo tempo formais, gramaticalmente impecáveis e leves – algo que costumava fazer com boa dose de sofrimento. Pensou em interromper a tarefa e retomá-la apenas no dia seguinte, mas sentia-se motivado demais para cessar por ali. Transcreveu então mais meia hora de aula, digitando com precisão e vontade. E sem parar uma única vez.

Logo após a segunda etapa da missão acadêmica, começou a chover torrencialmente e Valdemar foi correndo ao jardim para colocar os vasos de planta a salvo dos grossos pingos d’água que acabariam por enxarcar rapidamente a terra, apodrecer as raízes e matar as plantas. Tirou os vasos com rapidez, os organizou com precisão no canto da garagem e fez o mesmo com os que estavam no quintal. Ao todo, quarenta vasos de diversos tamanhos e pesos preenchiam, lado a lado, locais cobertos da casa. Vendo que algumas petúnias, Bougainvilles, roseiras e herbáceas continham folhas e galhos secos e ostentavam formas desgrenhadas - a maioria delas há meses naquela situação - decidiu podá-las. Acabou estendendo o trabalho para todas as demais plantas, até para as que não pediam qualquer tipo de intervenção. Estava no auge daquele prazer doméstico, quando percebeu que não havia mais planta a ser podada. Um amontoado de folhas e galhos se espalhava nas regiões exteriores da residência, parte trazida para dentro de casa pelo vento. Juntou tudo em um imenso saco de lixo e o levou para a calçada. Ato contínuo, livrou-se da roupa encharcada de suor e tomou banho.

Era feriado e Valdemar não havia programado o dia. Já havia adiantado boa parte da transcrição da aula gravada e passado proveitosamente um bom tempo da manhã cuidando do negócio das plantas. Faltava preencher a outra metade da manhã, até a hora do almoço, e o resto do dia, até a hora de dormir. Sem saber o que fazer dali em diante, pegou um livro cuja leitura havia interrompido há semanas e leu numa só toada dois terços da obra. Durante a leitura, sentiu-se assaltado por um arremedo de cansaço e chegou a se questionar se o que sentira se tratava realmente de fadiga ou coisa do tipo. Não podia ser. Então, voltou ao livro e mergulhou na história até sentir fome. Era meio dia e decidiu ir a um restaurante para almoçar. O céu estava claro e o sol ameno. Valdemar escolheu então o trajeto mais longo entre a casa e o restaurante de modo a curtir por mais tempo o verde intenso e a brisa agradável. Depois do almoço, passou em uma loja de discos usados e em uma livraria, onde por acaso encontrou um livro que procurara sem sucesso durante todo o ano passado. Folheou algumas páginas, leu trechos aleatórios e sentiu-se motivado a escrever um conto. Porém, tinha que ser naquele momento, para não perder o fio da história e a inspiração. Voltou para casa imediatamente e escreveu o conto inteiro, enquanto digeria o almoço.

Já era noite quando concluiu, satisfeito, a revisão da escrita. Recordou com assombro que antes levava dias, às vezes semanas, para criar uma história, revisá-la, depurá-la no espirito e por fim publicá-la no blog pessoal. Na ocasião, contudo, fizera tudo isso em questão de horas e ainda sentia-se apto a repetir o processo. Pensava nisso quando de repente um sentimento arrastado, modorrento – mas que não era cansaço – começou a percorrer-lhe o corpo e a mente, como uma parestesia generalizada.

Alarmado, foi ao recipiente contendo pó de café, tipo “extra forte”, tirou dali três porções (concluiu que três era insuficiente, então pôs mais duas) no filtro da cafeteira, abasteceu o reservatório de água e aguardou a jarra de vidro ser preenchida com o líquido escuro.

“Exatamente como os viciados em cocaína”, concluiu, antes de levar o copo à boca e sorver o primeiro gole.

João Pegado
Enviado por João Pegado em 26/01/2022
Reeditado em 26/01/2022
Código do texto: T7437923
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