Cada dia um[a pessoa] - 04

Assim que abri os olhos, percebi que alguma coisa não estava bem, embora não soubesse imediatamente o que era. Sentia as pálpebras pesadas, pisquei algumas vezes e esfreguei os olhos. Me sentei na cama e senti a cabeça girar. Respirei fundo até a sensação passar e nesse meio tempo percebi três coisas. A sensação nos olhos era de ter chorado até adormecer. Estava com muita fome, então não devia ter comido nada antes de dormir. E havia uma ardência na pele da perna direita. Afastei as cobertas e levantei a barra dos shorts para conferir. Vi quatro linhas vermelhas na pele, cortes bastante recentes feitos com algum tipo de lâmina. Eram superficiais, mas com algumas gotas coaguladas de sangue aqui e ali. Havia também outros mais antigos, rosados, de tons marrons e vários esbranquiçados, visíveis apenas de perto na pele branca.

Um sentimento de cumplicidade me invadiu enquanto passava os dedos lentamente pelas cicatrizes, sentindo a textura de cada uma e uma dor reconfortante quando os dedos passaram pelos cortes mais recentes. Apesar de nunca ter me machucado por respeito aos corpos em que vivi, não me era desconhecido o estado mental que podia levar alguém a fazer isso.

Sacudi a cabeça para afastar os sentimentos e fui começar o dia. Primeiro procurei pelo quarto algum sinal de remédios psiquiátricos que poderia precisar tomar, mas não havia nenhum a vista. Então sai do quarto a procura do banheiro, lá encontrei um antisséptico e algodão que usei para limpar os cortes recentes. Inicialmente o sangue deixado ali amoleceu e se espalhou pela pele, mas quando terminei já estava com um aspecto bem melhor.

- Filha, já acordou? – Uma voz feminina chamou

- No banheiro

- Venha comer

Lembrei que estava com fome. Encontrei um homem, uma mulher e uma criança sentados em uma mesa na cozinha.

- Bom dia! – Cumprimentei sorrindo

A forma que os adultos se entreolharam antes de responderem me fez pensar que normalmente não teriam recebido um bom dia em tom animado. Também pareceram satisfeitos em ver que estava comendo bastante.

- Que bom que está mais animada hoje filha

- É que hoje vou no cinema com uma amiga depois da escola

- Qual amiga?

- Amanda

O primeiro nome que me veio a cabeça foi na menina que eu passei o dia sendo ontem. Não fazia ideia quem eram as amigas da pessoa que eu era hoje, ou mesmo se tinha alguma. Também não sabia ainda onde iria depois da aula, mas sempre que possível reservava algum tempo do dia para estar longe de pessoas conhecidas.

Talvez devesse realmente ir fazer algo divertido, tanto para mim quanto por ela, que iria se lembrar do dia de hoje. Frequentemente eu conversava com as pessoas que fui no dia anterior, me divertindo em descobrir o quanto se lembravam. Apesar de terem a memória bastante nítida, não viam nada de estranho, sem estarem cientes que não haviam estado no controle de si.

Porque não convidar alguém para ir ao cinema? Amizades nunca são demais, seja por um dia ou por mais tempo.

Durante os intervalos das aulas, aproveitei para sondar qual era a proximidade das pessoas da sala. Para isso bastava olhar fixamente para uma pessoa e esperar que ela percebesse, dependendo da forma que reagissem, poderia dizer qual era a relação que tinham. Um menino retribuiu o sorriso antes de desviar o olhar envergonhado. E uma menina acenou quando percebeu meu olhar e acenei de volta. Na dúvida, resolvi convidar os dois.

Raon Hao
Enviado por Raon Hao em 24/01/2022
Reeditado em 24/01/2022
Código do texto: T7436560
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