Vereda dos Freire
Apeou do cavalo no retorno da caminhada, era domingo, na tardinha, boca da noite. Desarreou, uma cuia de restolho foi o mimo e se despediram, afinal passaram o dia juntos, se conduzindo. O pelego ficou amassado, e com cuidado o dependurou e afofou, as fibras compridas de lã avermelhadas sabiam que ao amanhecer, a desejada rotina tornaria.
No auge de seus 33 anos, viçoso, sadio e disposto, rédeas na mão, sorria para vida, fazia o que gostava, como dava na veneta, às próprias custas. Possuía o suficiente.
O dia foi longo e contemplativo, não tedioso, más eremítico. Refez a trilha da vereda dos Freires, léguas até a nascente, ao sopé dos paredões de quartzito amarelados, petrificados e indiferentes. Acima deles a serra de pedra mineira com escassa vegetação (arnica, saborosas, marolos, mangabeiras e ralos capins) ia até o cume onde jaz um senil cruzeiro, altar aberto das penitências e dos agradecimentos de graças rogadas e alcançadas.
A matula foi farta e caprichada, horas de preparo pela esposa no dia anterior. Água não levou, lá tem. Deitou-se cedo, com as galinhas, pois queria estar totalmente desperto e descansado. Sem sono e cansaço o dia é melhor, mais produtivo, ideais até mesmo para os misticos momentos oníricos, buscados!
Deitaram-se com as galinhas, despertaram-se com os galos, madrugadinha, alvorecer. Logo o cheiro do café impera na cozinha e na mesa, servido o bororó, biscoito de farinha, tarecos, pasmadas, leite, uma fartura de delícias da lida roceira; trabalhosa, mas boa. Voltou do curral já com o cavado arreado, cada coisa em seu lugar, preparado.
- se cuida, não volte dinoitão disse ela feliz!
- deita de novo, tá frio, bjs
O cavalo era companheiro, manso e esperto. Na porteira, mais um aceno e um beijo jogado. Seu cachorro os acompanhou, era bem-vindo.
O frescor da manhã era como se pairasse no ar a transmigração da noite em dia. Juntos amanheciam. Abertos à luz que emergia.
Por um bom tempo tentou diferenciar solidão de isolamento. Decidiu que isolar é voluntariamente ficar consigo mesmo, anacoreta, estase, por tempo determinado, mas se sabendo integrado ao meio à sua volta, com aponia e paz. Solidão é estar e se sentir involuntariamente isolado, se abandonar solitário, rodeado ou não, de pessoas e por tempo indeterminado, com dor, sem aponia e sonhos. A opção de caminhar, hoje, foi de isolamento, se fosse solidão seria fuga.
Não tinha pressa de chegar, pois, a caminhada já era boa. O cavalo marchava irreverente, comodamente, sem solavancos, rédeas soltas. Os pensamentos galopando a deriva, sem censura, soltos.
No córrego, sol raiando, não passou pela ponte, foi pela estrada boiadeira, águas rasas. O cavalo bebeu uns goles e seguiram. Canarinhos e pintassilgos disputavam melodias que naquele momento pareciam mais belas e divinas, apreciou. Uma moita de arranha gato cravou espinho na canela direita, felizmente ficou no tecido, se deu por feliz, pois incomoda os riscos vermelhos de dor.
Nas lacunas da mente primeva está a exteligência do ser, e naquela vereda, naquele lugar tudo de humano era silêncio. Com inteligência apurada pode se integrar e se comunicar fazendo parte. Era mais um ser vivo, ou máquina de sobrevivência engendrada pelos genes replicadores - vida - naquele cenário.
Lembrou-se de Pierce, e sentiu a viva conexão sinéquica entre a matéria e a senciência ou mente, entre a natureza e a subjetividade, e a natural desnecessidade de um Design.
Na metade do caminho o sol dominava e inteiro se impunha, pegou absorto do embornal de couro, biscoitos, e seguiu. Mastigava a quitanda e ruminava saudades e perspectivas. Seus pensamentos não estavam sobre o cavalo, cavalgavam alados, sem porteiras, sem rastos.
Quando se deu conta, chegou. O baixeiro e o pelego forraram o chão, sob uma árvore. Tirou o freio do cavalo, deixou o cabresto e o deixou pastar. Sem perder os devaneios, se deitou e cochilou de sonhar.
Deu umas voltas, certificando-se do local, e meditou antes do "almoço", lidou com os sete chacras e se deixou vazio de pensamentos de desejos de vontades...
Leu um pouco, e lá pelas duas da tarde, voltou. Planejou a semana...
Foi recebido com um abraço e um beijo. Tratou das criações, jantou fazendo o que mais gostavam, pensar e conversar.
Combinaram que no próximo domingo, iriam os dois ao cruzeiro. Era tempo mangaba , fariam compota.
Na roça também lugar de cometer o pecado de pensar... estou agnosticamente avaliando!