CAPITALISTAS

Era uma dessas pequeninas cidades do interior de Goiás, cercada por rios ainda não poluídos, com um clima generoso no inverno e razoavelmente quente no verão, o que acabava por trazer uma boa quantidade de turistas, principalmente dos grandes centros de Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro. Nas rodas de cachaça que então se for formavam nos botequins,

Messias, homem pobre e sonhador ouvia comentários de pessoas que vinham das cidades grandes e que contavam o que por lá acontecia. Quando falaram que Karl Marx queria acabar com a pobreza, Messias ficou fascinado. Nada entendia da filosofia de Marx, mas a ideia de tirar os homens da miséria mexeram com seus brios.

Quando seu primeiro filho nasceu pôs-lhe o nome de Karlos, pois achava que seria uma tradução de Karl. O escrivão relutou em pôr o K no nome, mas Messias implorou tanto que ele cedeu. O menino foi crescendo naquele meio pobre, não foi à escola, mas aprendeu a ler e escrever com Josino, pai do Gerardo, um amiguinho de peraltices, quando, já cansado das correrias, se chegava para ouvir o que o velho tinha para contar.

No início eram apenas narrativas da infância, mas como o passar do tempo acabaram por se converter numa “escolinha” onde os dois meninos faziam perguntas sobre tudo que lhes viesse à cabeça e o Josino respondia até onde lhe era possível, inventando quando não tinha resposta para algumas. Depois foi mostrando os números e as palavras, que os meninos decoravam, mais para não decepcionar o “mestre”. Ao fim de algum tempo, Karlos já conseguia escrever seu nome e várias palavras, assim como a fazer contas de somar e de subtrair.

Um dia, apareceu na casa de Karlos um pequeno gato que foi logo acolhido pelo menino. O pai não aprovou sua permanência, mas o filho escondia o felino com tamanha habilidade, que Messias pouco via o animal. Quando, um dia, deu de cara com o bichano, já este estava crescido e forte. A única maneira que Karlos encontrou para manter seu gato foi concordar com o nome que o pai exigiu para ele: Frederico, em homenagem ao companheiro de ideias de Marx. Karlos o tratava assim na presença do pai, mas no restante do dia só o chamava de Fred.

Gerardo tinha uma irmã, um ano mais velha do que ele, que participava alegremente das brincadeiras. Era Sara, que sempre ficava ao lado de Karlos nas discussões entre ele e Gerardo.

Um dia, depois de muito pensarem no assunto, os três amigos resolveram criar um lugar onde pudessem ficar afastados de pais e adultos para melhor pensar e discutir as novas peraltices e até dormir um pouco ao som chiado e delicioso de cigarras e trinados de pássarinhos esvoaçando por toda parte. Escolheram o fundo do quintal da casa do Messias, todo tomado de mato alto, com muitas árvores em volta. Ali construíram um casebre de ripas, papelão e zinco, que Karlos batizou de Prol, porque sempre ouvia o pai falar em proletário, mas não conseguia dizer o nome todo sem se atrapalhar.

A inauguração contou até com a presença de Fred, que acabou ganhando sardinhas fritas, apanhadas por Karlos na cozinha de sua casa.

Sara teve o privilégio de abrir a primeira sessão e passou a Presidência para Karlos, sob o olhar enciumado e desaprovador do Gerardo. Karlos resolveu que seu mandato seria exercido por três meses e depois iria para o Gerardo. Sara preferiu ser apenas a secretária vitalícia da Presidência. É claro que os meninos não usaram essas palavras complicadas acima ditas. Foi mesmo na base do “agora Karlos, depois Gerardo.”

- Eu começo sempre as reuniões” – “decretou” Sara.

Foi apresentada pela menina a relação das data dos aniversários dos três e mais a do Fred, que seriam comemoradas sempre ali. Todos concordaram e até o bichano deixou escapar um miadinho, o que provocou risos e aplausos. O maroto aproveitou para pegar mais uma sardinha e raspou-se dali para lugar mais sossegado.

Karlos levantou-se e disse que tinha um assunto para tratar, que o estava perturbando. Os amiguinhos se voltaram para ele.

- Sara e Gerardo. Vocês sabem que quando chega o verão nossa cidade é invadida por aqueles sujeitos antipáticos que moram nas capitais. De hoje em diante vamos chamar essa gente de capitalistas. Combinado? Quem mora na capital é capitalista.

Novas palmas e assovios.

- Tem razão, meu amigo. Vamos botar esses capitalistas pra fora da nossa cidade! – gritou Sara.

- Tô com vocês! – emendou o Gerardo.

Fred, que viera sondar se ainda havia sardinhas pra ele, ficou olhando o dono e ronronando baixinho.

Estava finda a primeira reunião do Prol. Agora era partir para a ação.

Ao passarem pela rua principal, encontraram o Petrarca, filho do Prefeito e que, sempre que cruzava com os três amigos, vinha apresentar suas ideias, em tudo semelhantes às do pai.

- O que fizeram hoje? – perguntou o Petrarca.

- Uma reunião para botar os capitalistas pra fora da cidade – respondeu o Gerardo, já olhando de lado o filho do Prefeito.

- Que história é essa minha gente? Parece coisa de comunista. Onde é que tem capitalista pra pôr pra fora da cidade?

- Ô, Gerardo, por que tu tinha que dar satisfação pra esse aí? – resmungou Sara.

- Não é da tua conta, Petrarca. Vai lá ficar com o teu pai, que é melhor – emendou o Karlos.

- Olha lá se não vão fazer besteira. Meu pai bota a polícia em cima de vocês, inclusive dos pais de vocês também.

- Vai, Petrarca. Vai ficar com teus amigos capitalistas.

E os três amigos passaram pelo filho do Prefeito sem olhar para ele.

Horas mais tarde, ao som das cigarras e após o almoço, Sara falou:

- Pensando bem, até que nós podíamos convidar o Petrarca para a próxima reunião do Prol.

- Que raio de ideia é essa, garota? Ficou maluca? – fuzilou o Gerardo.

- Eu explico, eu explico. O Petrarca vai acabar nos trazendo informações que talvez nos ajudem a conhecer melhor os capitalistas e seus pontos fracos. Além disso, ele pode levar umas comidinhas bem melhores do que aquelas sardinhas que só o Fred consegue aguentar.

- Hummm! Vamos pensar mais uns dias. Agora, cada um pra pra sua casa, senão os pais podem desconfiar que estamos aprontando alguma - concluiu Karlos.

O ambiente na casa de Karlos estava pesado. O pai andava de um lado para o outro, mãos nos bolsos, bufando de vez em quando e falando entre dentes.

- Oi, pai. Está tudo bem?

- Se fizer outra piadinha dessas, fica de castigo sem ver os amigos!

É, a coisa estava feia e Karlos foi ao encontro do pai, interrompendo sua caminhada.

- Por que essa aflição, pai?

- Foi coisa daquele cretino do Frederico. Se ele me aparecer, penduro ele pelos bigodes na maçaneta da porta do banheiro. Imagine que eu estava retirando os miúdos do porco que matei para a festa de fim de ano. Pois foi só me afastar um instante para buscar água na geladeira e o cretino do seu gato roubou os miúdos. Quando voltei, era sangue pra todo lado e nem sombra dos miúdos. Karlos, não quero mais esse gatuno aqui em casa. Ouviu bem?

O menino nada respondeu e teve de se conter para não rir. Chamar o gato de gatuno, numa hora daquelas? Pediu licença ao pai e retirou-se, indo direto procurar Gerardo e Sara. Motivo: convocação extra, imediata, do Prol. Assunto grave.

- O que houve assim de tão sério, Karlos? – perguntou Sara. Você está com cara de quem viu fantasma.

- Quase isso, amiga. Imagine que o Fred está sendo expulso lá de casa porque pegou os miúdos de porco que o pai deixou sobre a pia enquanto foi buscar água na geladeira. Pensem bem. Imaginem se vocês não apanhariam uns suspiros que estivessem em cima da mesa, sem ninguém por perto? Foi o que fez o Fred com os miúdos. Só que o pai não vê assim.

Gerardo interveio:

- E agora? O que vamos fazer? Nosso Fred não pode ficar ao desamparo! Vou falar com meu pai e ficamos com ele, até que seu pai se acalme. Aí ele volta pra você. Afinal ele já se divide mesmo entre as nossas casas.

E lá se foram, triunfantes e alegres. Mais um caso resolvido. E sem precisar de reunião.

Ficou decidido, também, que convidariam o Petrarca para a próxima reunião do Prol, na tarde do dia seguinte.

Cada um dos três amigos pediu um dinheirinho ao pai para a compra de pães-doces e, em vez de comer as guloseimas, levaram tudo para o Prol.

Sara conseguiu fazer uma pasta de amendoim ralado e sugeriu que o Petrarca também contribuísse com alguma coisa. O filho do prefeito falou com a cozinheira da casa e levou uma cesta onde se destacavam: um frango cortado em pedaços, uma compota de goiaba, uma torta de chocolate, além de pratos, facas, garfos, copos, colheres e guardanapos.

Os três amigos ficaram de olhos arregalados ao verem tanta fartura.

Depois do lanche, Sara abriu a sessão e passou a palavra ao Karlos.

- Muito obrigado por ter comparecido ao nosso clube, Petrarca. É modesto, mas como o encontro vai ser breve, você não precisa ficar aqui por muito tempo. Vamos direto ao assunto. Por que você defende tanto os capitalistas?

- Olha aqui, Karlos. Ainda não entendi que história é essa de capitalista pra cá, capitalista pra lá. Afinal a quem vocês chamam de capitalistas?

- Não se faça de desentendido, Petrarca. Capitalistas são esses bobos bem vestidos e cheios de conversas e que enchem nossa cidade durante o verão. Como eles vêm das capitais, nós chamamos eles de capitalistas. Eles só sabem zombar da gente porque não somos das capitais. Estamos lutando para expulsar os capitalistas da nossa cidade.

Petrarca estava de queixo caído. O garfo que segurava, com um pedaço de torta, permaneceu parado no ar. Estava petrificado com tanta ignorância.

- Ei, gente. Vocês estão usando capitalista num sentido que não é o certo. Meu pai diz que capitalista é aquele que aplica o seu dinheiro pra viver melhor ou pra enriquecer. Muita gente que vem passar férias por aqui pode até ser capitalista, mas nem sempre mora na capital. Me desculpem, mas já está na hora de ir embora.

Quando já ia saindo, Gerardo lhe perguntou:

- Seu pai é capitalista, Petrarca?

O menino seguiu em frente sem nada responder.

Foi a derradeira reunião do Prol.

Ruy Soares
Enviado por Ruy Soares em 23/01/2022
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