Cada dia um[a pessoa] - 02
Nunca gostei de acordar e descobrir que é o aniversário da pessoa que me emprestou seu corpo pelo dia. Primeiro porque me lembra que eu não sei quando é meu aniversário. Desde que me recordo, nunca passei mais 24 horas no mesmo corpo. Não tenho como saber que dia nasci e não tenho pais fixos que me digam essas coisas. Ou que me contem que tipo de bebê eu fui, se eu chorava muito ou não. Tenho apenas minhas próprias memórias. O meu nome fui eu que escolhi e este não está escrito em nenhum documento.
Porém eu sei a minha idade, já que ocupo sempre um corpo da mesma idade que a minha. O que facilita muito a minha educação. Tenho a tendência de migrar para o corpo de pessoas geograficamente próximas, as vezes frequento a mesma escola por algumas semanas. Mas deve concordar comigo que estar no mesmo ano letivo é ainda mais importante do que estar na mesma escola. Não que eu fosse sofrer qualquer consequência por ir mal em uma prova. Para mim não existem consequências, a não ser as que aconteçam no mesmo dia.
Nos dias comuns, eu me dou o direito que usar o tempo como achar melhor. E na maioria dos dias aproveito a vida. Mas quando a pessoa tem uma responsabilidade ou é um dia importante, como seu aniversário, eu me contento em desempenhar o papel esperado o melhor que puder. É mais que uma questão de cortesia, é uma regra interna que imponho a mim mesmo. Ainda que não existam consequências, eu tenho a minha consciência. Na medida do possível eu tento não atrapalhar a vida dos corpos que habito. Afinal, já estou lhes roubando um dia. Essas pessoas não consentiram em me deixar ocupar suas vidas e seus corpos. Nem as pessoas com quem interajo durante o dia sabem que suas conversas privadas estão sendo direcionadas a alguém desconhecido.
As vezes parece que minha existência se resume a atrapalhar quem está a minha volta. E algumas vezes me pergunto se eu ao menos tenho o direito de viver. Independente dos meus sentimentos, todos os dias eu acordo e encaro mais um pedaço de vida. Nem nos meus dias mais difíceis considerei tentar o suicídio como uma opção. Ferir o corpo que estou é machucar outra pessoa, algo que eu jamais poderia fazer.
Hoje foi um dia desses. Fazer a comida de festa junto com uma mãe alegre e um irmão engraçado foi um momento feliz. Mas quando começou a festa, não consegui aproveitar nem do sabor doce dos brigadeiros, que pareciam entalados na garganta. Recebi presentes e abraços. Palavras carinhosas. Mas nenhuma delas era realmente direcionada a mim. Enquanto cantavam os parabéns, me senti terrivelmente só. Invisível sob todos aqueles olhares de pessoas desconhecidas. Mas em vez deixar as lágrimas virem, empurrei meus sentimentos para longe e me esforcei para retribuir os sorrisos.