Um clique
Um clique
Naquelas terras do coração da guerra e de já fraca memória, estava um guerrilheiro a tentar perceber o que o trazia ali e porquê.
O céu estava limpo e nada podia confirmar que no chão, naquele chão do Bié, havia guerra e medo. O guerrilheiro começou a ouvir um zumbido que podia ser vento, podia ser medo, podia ser imaginação…
O zumbido foi crescendo ao ponto de deixar de ser zumbido e passou a ser ruído, barulho. Era um avião.
Ele só sabia duas coisas: O caminho de casa para a lavra e usar o famoso Stinger, lança morteiro terra-ar. Às vezes, poucas vezes, lembrava-se do caminho para a escola e para a igreja. Depois esquecia-se.
O ruído, o barulho, foi aumentando e ele viu com nitidez a aeronave, avião de barriga azul para se camuflar no céu do centro de Angola, do centro da guerra. Mecanicamente, preparou a arma de nome americano. Compôs a postura e ouviu um pequeno som como se fosse daqueles despertadores dos relógios que o tio Joaquim trazia de Luanda. Bip. Bip. Acendeu uma luz verde e ele clicou no pequeno gatilho da arma americana. O projéctil saiu, ele caiu, e perdeu a noção do tempo e espaço. Rodopiou e o zumbido já estava dentro da cabeça dele, até que tudo foi ocupado por uma explosão, um estrondo distante, no céu, no céu do Bié, acção dele, culpa dele.
Ficou a olhar para aquela máquina azulada na barriga que caía em fumo e chama em direcção ao solo. Nenhuma máquina anda para aí a voar sozinha, portanto, alguém, um ser vivo, aproximado de humano, filho da criação de Deus, alguém está lá dentro. Uma pessoa? Duas? Um inimigo? Dois inimigos? O peso metálico da aeronave bateu com violência no solo. Estranhamente o silêncio voltou.
-Coisa boa que fizeste, pensou. Um clique e salvei este povo da guerra, da miséria, da fome, sim senhor, um raio de um clique e está tudo resolvido. Posso voltar para casa, posso abraçar a mãe porque o pai já morreu naquela emboscada de ninguém e que me trouxe até aqui.
-Pai, já te vinguei.
O jovem guerrilheiro quis confirmar o resultado do tamanho da sua vingança. Foi andando firme. Bem, não tão firme. Tremia por saber que matou, exactamente como alguém matou o seu pai. O fumo do aparelho dava a direcção certa e ele lá foi, consciente de encontrar o resultado irreversível do que tinha feito. O rapaz viu que havia um homem fora da aeronave. Ele tinha as pernas partidas e ferimentos no abdómem. O jovem viu que aquele homem fardado tentava alcançar o cantil de água. Ele, escondido na mata próxima, disse:
-Não bebas água.
O militar assustou-se e tentou tirar a Makarov da cintura.
-Não bebas água. Estás a perder muito sangue, se beberes água vais morrer.
O militar ajeitou-se e respondeu: -Sabes que isso vai acontecer. Ser agora ou depois é indiferente.
-Não bebas água agora. Posso ajudar?
-Sim, ajuda-me a beber água.
-Rádio, tens rádio no avião?
-Sim. Temos um sistema de aviso. Basta um clique tipo bip bip e eles vão saber onde eu estou.
-Um clique?
-Sim, camarada, um clique.
O jovem kwacha clicou pela segunda vez naquele dia.
Victor Amorim Guerra