Vieira

Em razão de fortes laços estabelecidos durante meu período de infância, minha amizade com Vieira manteve-se intata e inexorável. Está morto, embora, apodrecendo em um caixão simples e modesto. Nas palavras de meu próprio amigo: “Prefiro, em verdade, a companhia fétida dos vermes e moscas. A filosofia dos necrófagos, amigo, é a mais bela. Eles veem cadáveres, e nada mais. Para eles, todos são iguais”. Dissera essas palavras repentinamente, certo dia, e jamais pude esquecê-las.

Vieira era um homem singular, excêntrico. Frequentemente perdia-se em pensamentos e seus olhos adquiriam um brilho característico, agudo, vago. Nada poderia despertá-lo nesses momentos.

Eu e ele crescemos juntos, como bons amigos. Tomo uma linha cronológico vulgar para que a memória de meu melhor amigo se estabeleça com coerência. Vieira, logo desde os mais tenros anos, sofrera provocações e pulhas. Ele não fora particularmente belo. Seu rosto era um tanto desproporcional. Tinha feições pouco comuns e uma pele contraída, como se repleta de cicatrizes. O tempo apenas serviu para tornar tais características ainda mais acentuadas. Ainda assim, meu amigo era indiferente e, em situações vexatórias e cruéis, como quando encaravam-no com repulsa e insultavam-no de aberração ou monstro, ele ria, como se compreendesse algo que ninguém além dele pudesse atinar.

É claro que, quando criança, lidar com problemas de qualquer categoria não se torna algo essencialmente complexo. Entretanto, com o passar dos anos, seus problemas poderiam se agravar. Mesmo assim, quebrando um potencial abatimento e ódio, Vieira tornou-se, na verdade, cada vez mais imperturbável.

Lia bastante, quase o tempo inteiro. Por vezes esquecia-se de suas obrigações mais urgentes, como alimentar-se ou dormir. Não costumava manter qualquer tipo de conversa, mas, quando o fazia, o raciocínio que construía tornava-se arrebatador, a um ponto que dificilmente poderia acompanhá-lo. Em uma ocasião, quando caminhávamos lado a lado, mencionei que vira, na biblioteca da cidade, uma moça espantosamente bela. De imediato, Vieira ergueu seu olhar e fitou-me. Suas sobrancelhas contraíram-se, então baixou seu olhar e tornou-se um tanto absorto, as mãos metidas nos bolsos. Não pude deixar de estranhar seus gestos, mas não quis incomodá-lo com minhas perguntas. Continuamos a caminhar, silenciosos e alheios. Logo comecei a notar uma mudança peculiar de meu amigo no modo de andar. Suas passadas tornaram-se irregulares e um tanto trôpegas. Era um atributo particular de Vieira quando pretendia questionar alguém, como se não pudesse estabelecer suas indagações sem prejudicar o movimento de suas pernas.

Com efeito, depois de tropeçar algumas vezes pelo caminho, questionou-me:

- Bela, então. Uma moça espantosamente bela? Mas como pode assegurar-me que era, de fato, bela?

- As feições da moça, amigo, teriam feito com que mergulhasse em completo fascínio, posso garantir-lhe isso.

- Então se concentra nos detalhes menos relevantes. Concordo que geralmente percebemos e interpretamos em alguém a constituição física e compleição. Entretanto, o aspecto físico de alguém não nos diz nada a respeito dele, não profundamente. Somos apenas um cérebro. O corpo é um acessório do que somos. Ele cumpre funções que, na verdade, tem apenas um fim: manter nosso cérebro saudável e disposto. Para tanto, o corpo também precisa ser salutar e disposto, mas apenas porque o cérebro urge. Desse modo, vejo a beleza não de acordo com as feições de um sujeito, mesmo que procure com persistência acentuá-las e preservá-las, mas de acordo com o que ele realmente é. Para afirmar que alguém é belo, amigo, um escrutínio longo e exaustivo de suas capacidades intelectuais precisa ser estimulado. Você esquece o que somos e se detém em um conceito equívoco de beleza. É verdade que nos sentimos mais confortáveis próximos de pessoas que aparentam aspectos mais agradáveis, e por quê? Porque, meu amigo, instintivamente percebemos aqueles que carregam semblantes mais simétricos como mais saudáveis e, por conseguinte, mais capazes de satisfazer um objetivo biológico primitivo e comum: a reprodução. No entanto, não é mórbida a ideia de se deixar levar por percepções automáticas das coisas que nos cercam, sem realmente procurar compreender o que são ou como funcionam?

- Julgo que sim – respondi, um tanto pasmo e despreparado.

- Portanto, eu o aconselho a questionar com mais frequência resoluções maquinais como suas definições vulgares de beleza, procurando sempre escapar do senso comum e de certezas absolutas. Leva uma existência vazia aquele que é subjugado pelos próprios instintos, e não desejo que seja um.

Tornamo-nos quietos outra vez, prosseguindo calma e pacificamente.

De súbito, um rato gordo e desgrenhado cruzou nosso caminho, tendo assomado de um par de sacos de lixo que foram deixados pela calçada. Assustei-me, mas Vieira limitou-se a sussurrar: “Eis algo belo! ”.