Fardos do amor
Era início de um novo ano. Ela se preparava para iniciar mais uma jornada de trabalho. Para isso, acordou cedo, e sentada na beira da cama, rezou e agradeceu a Deus pelo trabalho, por sua vida, por sua família. De tudo que necessitava, fez seu único pedido, saúde para trabalhar e saúde para seus filhos, pois sabia, o seu maior presente era ver os filhos com saúde, e o trabalho, que mesmo com pequeno salário, fazia com amor e lhe garantia alentar, um pouco sustento para o lar, ainda que com grande dificuldade. Todos os dias, ali em diante, ela sairia para trabalhar e seria necessário não se atrasar. Para isso, preparava os filhos como quem organiza um batalhão para irem à casa dos avós, onde seriam deixados para os seus pais cuidarem dos meninos enquanto ia trabalhar fora dois e às vezes três turnos. O marido saíra cedo, era agricultor e cuidar do roçado e dos afazeres da terra lhe rendiam o dia inteiro.
Cedo do dia, tirava os filhos da cama, outros da rede, preparava as bagagens, dava uma olhada se estava tudo em ordem e passava a chave na porta. Fechando para guardar a casa que nada tinha de valioso, senão a própria vida e os filhos que seguiam com ela. Os filhos na época já eram cinco, três meninas em escadinha com diferença de dois a três anos de idade, um menino doente, e o outro já na barriga.
A matriarca era tal como uma galinha aninhando seus pintinhos, e por falta de pares de mãos, para segurar as mãos das filhas, aconselhava as menores a segurarem bem forte a barra da sua saia, enquanto levava o filho menor no colo, em cima da barriga de meses, bem agasalhado. Não poderia pegar nenhum resfriado. Não resistiria. O menino, quase morrera recém-nascido e sofria de intolerâncias. Não falava, não andava, e tinha algumas deficiências que ainda não se havia descoberto, pois ali mal se ouvia falar em médicos, e quando os chás e as benzeduras não faziam efeito, chamavam o farmacêutico Sr. Abelardo, muitas vezes com xaropes e injeções para baixar a febre. O que não fazia sentido à doença desconhecida do menino, e a mãe chegou muitas vezes a encomendar sua alma a Deus com uma vela na mão, chamando com pressa as meninas que brincavam na cozinha, imaginando-se ao se esconderem atrás da porta habitarem um porão, um túnel escuro de onde saía dragões, bicho-papão, e princesas trancadas numa sela.
O menino era o cravo no coração daquela mãe.
Era sempre assim, para cumprir sua missão, todos os anos ela saía cedo deixando as filhas e o filho menino doente na casa da mãe. No percurso, para que nenhum se perdesse, aconselhava-lhes a segurar-lhe bem forte a ponta da saia. As duas meninas menores tinham as mãos ocupadas, uma na saia, outra a levar um caldeirão com alguma comida feita ainda á noite para guarnecer o almoço. A outra menina também segurava a saia da mãe do outro lado como quem segura uma bandeira, e noutra pequena mão, levava com cuidado, para que não se quebrasse, a única meia garrafa de leite de vaca, recém chegado do curral e vendido na casa de Dona Bela para pagar no final do mês. O leite daria apenas um mingau para cada filho menor e para render se completava a meia garrafa com água, e quando sentiam fome à noite, a mãe lhe faria mingaus de chá preto, ou endro, engrossados com e araruta. Para as meninas, qualquer fruta do quintal, o caldo de feijão já fervia no fogo e as surpresas de um avô cuidadoso que fazia o nada virar tudo.
À filha mais velha restava velhas levar sob a cabeça, a trouxa de roupa suja com panos cheios de disenteria do menino desnutrido para que a avó ou a tia lavasse, uma vez que na falta d’água de chuva, restava no quintal da avó, do profundo cacimbão, a água salobra que o avô puxava em latões para a higienização.
Quando a mãe saía em procissão da rua de cima para o centro da cidade levando sua prole nos braços, na barriga, na barra de sua saia segurada pelas mãos menores como se fizessem alinhavo, ainda levava penduradas no ombro, as bolsas com cadernos e livros. Entretanto, não lhe era um peso, era um fardo doce e leve.
A romaria seguia em direção à casa dos avós onde os filhos passariam dois turnos do dia enquanto a mãe trabalhava
Na rua central, após a grande caminhada, as crianças já avistavam ao longe a casa com parede de taipa, e o avô na porta, à espera dos netos, pois bem antes do relógio da matriz tocar sete horas, ele já havia levantado. Seu despertador era o galo cantador no poleiro, e os pardais sobre as laranjeiras de fruta bem azedas ideais para o ponche que ele faria. Já havia pilado e coado café, posto milho para as galinhas e recolhido os ovos que serviriam para a gemada da neta querida, e enchido as bacias no batedouro embaixo da velha mangueira, com água salobra do cacimbão para a lavagem de roupa. Naquela manhã, o sol pairava sobre o quarador, aguardando satisfeito pelas fraldas e panos que branquearia, matando todo germe e trazendo ares de limpeza e saúde.
Cedo do dia, o avô tinha feito todo o trabalho e de todos o mais encantador e importante deles: armado a rede sobre a cama, com um fio de corda nos punhos para embalar o neto e sobre a cama arrumado o lençol, cobrindo e afofando o colchão de palha. Tudo estava pronto para a grande aventura de contar e ouvir histórias, até o menino doente dormir, até as meninas quererem brincar, até a avó chamar para o almoço, o avô cochilar e acordar para uma nova cantiga, um novo conto de trancoso, a roupa a tia lavar, o quarador deixar tudo alvo, e o sol secar fraldas e vestidos, e por fim, sem luz os maribondos afogarem-se no resto da água salobra, e ao lembrar-se que descansar era preciso, ao findar o dia a mãe retornar para buscar os filhos e seguirem para casa, levados pelo sereno da boca da noite, quando contando estrelas, estas a também contavam segredos às crianças e prometiam que no novo dia em romaria, a procissão para a casa da avó retornaria, para viver os grandes e ternos cuidados do amor, que durariam a eternidade.
Paula Belmino