Um Dia De Sorte

No ponto de ônibus, Aurora segura dois calhamaços de livros que seriam entregues na biblioteca ao final do expediente do seu trabalho, a bolsa pendurada no ombro de modo desajeitado, e a impaciência de esperar a condução que estava atrasada a quinze minutos. Assim começava o dia de Aurora que desde os primeiros minutos da manhã se encontrava estressada com uma goteira no telhado que atingia bem a sua cama, ou melhor, o seu lado da cama, pois o marido dormia tranquilo enquanto ela tinha que se ajeitar bem na beirada do colchão para não ser atingida pela goteira. Pela milésima vez falou ao marido para que fizesse um reparo no telhado, mas como sempre, ele dizia que depois veria a situação porque andava muito ocupado. Aurora ficou chateada como sempre, então teria que conviver com a goteira todos os dias de chuva. Saiu sem despedir do marido e sem tomar café da manhã.

Finalmente a condução chega e dezenas de pessoas se dirigem apressadas para subirem no ônibus. Sobe com os pesados livros e ouve o celular tocar na bolsa.

– Era só o que me faltava!

Busca encontrar rapidamente um assento livre, mas tudo ocupado.

Percorre com os olhos alguma alma piedosa que lhe ceda o assento. Mas em vão, ninguém quer seguir viagem em pé. O jeito é segurar firme os livros contra o corpo e agarrar a barra acima da cabeça com força, porque a condução enfrenta vários sacolejos ao longo do percurso. Novamente o celular toca. Não há o que fazer, se soltar as mãos para abrir a bolsa será inevitável um tombo Lembrou de uma vez em que o ônibus entrou em movimento e ela caiu sentada no corredor. Lembrou da aula de física de anos atrás, a lei da inércia.

Decide não atender ao chamado, fica quieta, mas o celular insiste em tocar e as pessoas já a encaram. Mas não tem como atender. Segue viagem de maneira descômoda até que uma senhora se oferece para segurar os livros. Agradecida, Aurora entrega-os e busca o celular que toca novamente na bolsa, e a custo o encontra em meio a tanta quinquilharia que carrega.

Mas foi só tê-lo a mão e tudo se silencia. Busca o número e verifica que é desconhecido. Menos mal. Mais dois pontos e chegará ao escritório. O ônibus para no penúltimo ponto e quando arranca novamente, o celular toca. De novo vasculha a bolsa e dessa vez atende com um tom nada amigável. Ouve uma voz suave do outro lado.

– Alô, Francisca é você ?

– Não, claro que não, deve ter sido engano.

– Então quem está falando?

– Já disse que deve ser um engano!

– Mas me disseram que esse é o número da Francisca, preciso muito falar com ela.

– Infelizmente, não posso ajudá-la.

Mas a voz do outro lado insiste em falar com Francisca e minutos depois de tentar convencer que ela não tem ideia de que seja Francisca, perde a paciência e diz.

– Sinto muito, mas tenho que desligar, no momento tenho dificuldades para falar ao telefone.

Aurora desliga, coloca rapidamente o celular na bolsa, pega os livros, agradece a boa senhora e na parada do ônibus desce rapidamente, só então verifica que desceu um ponto a frente do seu destino.

Fica furiosa com sua distração ao celular. Agora terá que caminhar com o peso dos livros mais quatro quarteirões abaixo. Caminha enquanto fala consigo mesma. Não acredita que possa ter descido no ponto errado. Agora chegará mais atrasada do que o previsto. A meio caminho é interceptada por uma senhora. Quer pedir uma informação. Aurora pensa em dizer que não sabe onde fica o local perguntado. Mas para e observa a senhora que parece meio perdida. Finalmente decide ensinar o caminho. Mas a senhora não conhece nada por aquelas bandas. Sentindo empatia resolve contornar o quarteirão, subir dois outros e levá-la à porta de onde ela precisa chegar. Depois de muitos agradecimentos e despedidas, Aurora retoma o seu trajeto.

Mas o celular toca novamente. Sem muita vontade, atende.

– Alô, Francisca?

– De novo, já disse que não é a Francisca-- E alterando a voz. – Aqui, é Aurora.

– Você tem certeza que não conhece a Francisca?

– Não minha senhora, não conheço nenhuma Francisca.

Novamente Aurora se distrai falando ao telefone, e não vê um buraco na calçada, e ao pisar se desequilibra e cai espalhado livros para um lado, celular e bolsa para outro.

Olha em volta, ninguém na rua, tenta se levantar mas os joelhos doem, estão bem ralados. Mas o que mais a preocupa são os livros, com um deles a lombada se despregou e o outro se sujou. Tem vontade de chorar, mas não tem tempo para isso. Se levanta com dificuldade pega a bolsa, os livros e o celular e para sua surpresa a pessoa do outro lado da linha continua falando. Desliga, está nervosa. Já foram dois incidentes por causa da Francisca que ela nem mesmo conhece.

Vai caminhando lentamente com dificuldade, seu aspecto não é nada agradável, rasgou a calça jeans na altura do joelho e depois verificou o estrago na manga da blusa.

O celular toca novamente mas dessa vez nem pensa em atender.

Finalmente chega ao trabalho. Um amontoado de pessoas estão na porta meio agitadas. Ela fica boquiaberta aos constatar que uma parte do telhado cedeu. E justamente em cima da sua sala. Felizmente nenhum ferido, só ela ocupava aquela sala. Sentiu-se estranha e logo se lembrou de Francisca com carinho.