Conto das terças-feiras – O herói da comunidade dos excluídos

Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE 11 de janeiro de 2022

Joaquim, que todos chamam de Quinzinho, é um senhor de mais de 75 anos de idade, nem ele mesmo sabe em que ano nasceu. Não se lembra de quando foi deixado onde sempre viveu, uma comunidade de excluídos, restando na lembrança alguns lampejos, obscuros, de cenas de uma mulher idosa deixando-o na entrada dessa comunidade, ainda com seis ou sete anos de idade. No local onde exatamente foi deixado, abrigou-se debaixo de uma tosca cobertura de madeira, por dois dias. Sem ter a quem recorrer, vasculhava latas de lixo de algumas casas, deixadas sobre as calçadas. Água, pegava à noite, da torneira de um jardim em frente a uma casa de madeira, onde morava um casal de idosos, para não ser apanhado. A bondade desse casal o acolheu e ele passou a usufruir da hospitalidade dos dois desconhecidos. Com o passar dos dias, já completamente integrado à comunidade, o menino os adotou como seus avós, e isso falava ao mundo, para a alegria deles que também não conheciam seus familiares. Bem, mas isso é outra história!

O tempo implacável foi passando, Quinzinho crescendo e aprendendo a se virar, fazia biscates, pequenos serviços para os moradores locais, recebendo em troca comida ou moedas de pequeno valor, que eram entregues aos avós, recebendo em troca carinho, um prato de comida, uma rede surrada para o sono reparador e o humilde teto para abrigá-lo em noites de chuva e frio.

Muitos cachorros perambulavam pelas ruas daquele local sem assistência dos poderes públicos, à cata de restos de comida, que era quase nada, dada as condições de seus moradores. Quinzinho sempre se indignava com aquela situação. Algumas vezes deixava de comer para dar aos pobres animais famintos. Quando se aproximava, os cães, em estado de verdadeira alegria, acercavam-se dele, pulavam em suas pernas, balançando demasiadamente suas caudas, deixando-o encantado.

Deitado em sua nova rede, comprada com o dinheiro que guardara todos esses anos, ele rememorava os dias que ali passara, desde a sua chegada, pelas mãos da senhora idosa, sua avó (?), não lembra, até os dias atuais.

Cavando em suas relembranças, passou a recordar:

“Certa manhã uma cachorra, que acabara de parir, viu um de seus filhotes ser arrastado pela enxurrada, chovia muito, ela empurrou os outros para debaixo de um telhado de uma oficina, protegendo-os da chuva e da enxurrada, correu em direção ao seu filhote que perdia forças de tanto tentar nadar. De um salto só, ela alcançou sua cria, abocanhando-a pela parte superior do pescoço, segurando-o firmemente. A correnteza descia forte, colocando os dois em perigo, quando foram avistados pelo Quinzinho. Imediatamente, sem antever o perigo, o garoto, repetindo o gesto da cadela mãe, saltou. Nadou até os dois, agarrou-os pelas pernas, acomodando o filhote entre suas costas e a camisa que vestia, amarrou-a em volta da cintura, deixando um dos braços livres para nadar. Assim, chegou a um ponto seguro, sob os aplausos de quem o assistia. Saindo dali caminhou por toda a extensão da margem onde as águas desciam soltas pela correnteza, para verificar se tudo estava bem”.

Achava que devia isso, principalmente, pelo acolhimento que tivera da comunidade, um menino abandonado pela família e prontamente acolhido por desconhecidos, sem terem nem mesmo para eles. Tomada de consciência bastante precoce, senso de responsabilidade sem mesmo saber o que isso significava.

Com o semblante sério, lembrou-se:

“Uma criança e sua mãe apreciavam aquele espetáculo da natureza, sobre um barranco que de repente cedeu, carregando os dois pelas águas revoltas”. Agarrado a uma prancha emprestada de uma construção próxima, o garoto pulou na correnteza em um local íngreme do terreno, que forçava a diminuição da força da água, facilitando a chegada até aos dois que precisavam ser socorridos. Novamente os aplausos, alguém de longe gritou o nome “Quinzinho”, chamando-o de herói. O coro foi aumentando, os aplausos, também. Envergonhado, não queria sair da água, foi retirado e carregado pelos companheiros de infortúnio.

Nascia um herói entre os excluídos. Um leve sorriso de satisfação e conforto se apresentou naquela face já acostumada a fazer o bem. Nos dias seguintes e em todos os outros de sua vida fora sempre festejado, saudado, atendendo a todos distribuindo efusivos acenos, no que era correspondido. Sempre sorrindo, como fazia agora, um sorriso radioso, inspirou profundo e longamente, fechou os olhos e adormeceu para não mais acordar. Pela manhã sua janela estava cheia de amigos e curiosos, ninguém tinha coragem de entrar naquele ambiente que mais parecia um santuário.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 11/01/2022
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