Viver é muito perigoso
Resolveu chegar às 7:50 no cartório, mas para isso teve que sair às 7:30 de casa, garantir que encontraria um lugar para estacionar. Encontrou uma vaga que demandava uma caminhada (a passos apressados) para conseguir o bilhete de regularização da vaga, mesmo assim chegou no cartório faltando 10 minutos para abrir. O portão já estava aberto e era possível sentar em uma das poucas cadeiras disponíveis naquele local ainda vazio pela hora.
Sentou-se e aguardou. Naquele instante havia apenas uma senhora lavando a parte externa próxima ao portão de entrada. A senhorinha bem vestida se esforçava para cumprir sua tarefa com rapidez manuseando uma mangueira d’agua e uma vassoura com agilidade. Em um breve descuido, ao esticar a mangueira, acabou por soltar da torneira, jorrando água pelo passeio, com movimentos calmos foi até a água e encaixou novamente de forma fácil e prosseguiu seu trabalho.
Às 8:30, quando foi atendido, descobriu que estava no local errado e teria que se deslocar para outro ponto da cidade, que por sorte abriria apenas 9:00, permitindo a chegada com 10 minutos de antecedência. Dessa vez deu tudo certo e às 11:50 foi almoçar e voltou para o escritório.
Após as funções mundanas e antes de ir para a casa, seguiu o conselho de sua tia e foi até o endereço que estava há dias guardado dentro da sua carteira. Escrito no verso de uma caixa de remédio aberto as seguintes informações: Benzedor todos os dias depois das 18:00 estrada santa fé 3 km direita direita. Afinal de contas, dois cartórios em um único dia era mau agouro e precisava ser corrigido.
Pegou a estrada para santa fé, andou três quilômetros e cento e cinquenta metros de dúvidas, virou à direita, e depois a direita de novo, encontrou uma casa coberta de lonas em um terreno cercado por arames espaçados. Era 17:50, olhou o papel de remédio escrito e ficou satisfeito por ter os dez minutos livres. A casa apesar de ser de alvenaria necessitava das lonas para proteger da chuva que caia tímida. O lugar era de uma desorganização encaixada, como se cada objeto deveria estar onde exatamente estava, incluindo os três sofás da parte de fora da casa e, que apesar das lonas, estavam úmidos.
Às 18:00, no alto da estradinha feia, foi possível avistar um senhor chegando em uma bicicleta. Moreno, chapéu de palha, velho e com poucos cabelos crespos e compridos. Só podia ser ele.
Em uma breve apresentação o velho já completou:
-Vou te benzer
O benzedor foi até o quintal e pegou um prato de louça lascado encaixado na desordem, colocou um pouco de água da chuva que acumulava em um latão e partiu uma folha de boldo em três partes. Com um sussurro indecifrável por 30 segundos concluiu a benzição e disse:
-Joga a água do prato para trás da cabeça
Após cumprir a ordem, deu uma olhada novamente e disse:
-Só a reza não bastou, vai ter que fazer despacho
Às 18:50 chegou em casa, tomou um banho, jantou e colocou uma vela para queimar em cima da geladeira, dormiu.
Acordou às 6:50, o despertador foi o cheiro de fogo. Chegou na cozinha e viu que a vela provavelmente havia caído, alcançado o velho carrinho de boi de madeira que também ficava sobre a geladeira e pegado fogo em todo o móvel doméstico. Certificou que o fogo estava morto. Às 7:50 conseguiu falar com a atendente do seguro residencial e após explicar a situação, obteve como resposta:
-Para dar entrada na papelada, eu preciso de um relatório do ocorrido com a sua assinatura. Ah, preciso que seja reconhecida em cartório e para sua sorte, abre agora às 8:00, mas o senhor pode chegar 8:30, eles só começam a atender após a limpeza do local.