O mestre dos quadrados vazios

A mesa estava posta, e os convidados chegavam aos poucos. Eu como responsável por guardar os casacos, chapéus, sobretudos e bolsas, tinha que ficar atento a tudo e a todos.

Alguns não queriam deixar seus pertences, seus acessórios. Então passavam por mim como se eu não existisse. Um lustre. Um quadro feio. Um ser invisível.

Outros iam chegando, tirando e me entregando, como se eu fosse um cabide humano, um armário inteligente, que podiam confiar. Como um especialista. Pelo status que tinham, imaginavam que eu era o melhor.

Não era nada difícil. Pegar os pertences, entregar uma etiqueta com o número e enfiar tudo na respectiva vaga, num armário cheio de quadrados vazios.

Pegar, entregar e enfiar. Um trabalho com inúmeras possibilidades, já que era eu quem decidia qual número deveria cada um pegar. Sim, eu era o dono dos números. O senhor das vagas. O mestre dos quadrados vazios, que como magia, em minutos estavam cheios.

Mesmo assim, sabendo da minha importância, eu era um anônimo. Olhando e observando cada um que entra, sinto algumas necessidades estranhas. Minha mente divaga. acredito que psicologicamente isso poderia ser explicado, mas nunca me importei com isso.

Por exemplo.vejo e observo uma velha senhora que caminha com dificuldades com sua bengala. Ela é lenta. Arcada. Imagino então eu me aproximando dela, e sem aviso, passo-lhe uma rasteira e ela se estatela no chão. Assim, sem mais nem menos.

Não sou um homem violento, e jamais faria uma coisa assim, mas minha curiosidade fica atiçada quando penso numa situação dessas. Que fariam as pessoas á minha volta? Ficariam me olhando espantados? Alguns agarrariam meu colarinho e me espancariam? Com certeza perguntariam, olhando bem nos meus olhos inchados por causa dos socos e pontapés:

-----por que? Por que? Por que?

Poderia tentar até explicar que foi minha sede do desconhecido. Que eu necessito do saber infinito, e que não foi nada pessoal. Mas não iriam entender. Para eles eu era um morto vivo que cuidava das suas coisas. Não podia ter esses arremetimentos. Tinha que estar enfiado naquele mundo de pegar, entregar e enfiar. Não compreendiam que por trás daquele balcão existia um ser humano que queria muito mais.

Um senhor com a cabeça raspada e brilhante coloca no chão uma pasta preta de couro. Parecia ser pesada. E se eu a pegasse e arremessasse contra sua cabeça lisa? Não poderia tentar defender o golpe com as mãos, porque seria uma atitude surpreendente. Ele não poderia esperar que eu fizesse aquilo.

Com a pancada ele cairia ao chão. Sua mulher o acudiria me olhando com cara de espanto. Uns me segurariam, crentes que eu era um agressor insaciável. Eu diria calma, calma. Não vou fazer mais nada. Foi só isso.

O careca sentado e encostado no balcão com as mãos na cabeça, talvez ensangüentada, ou não.

Dependeria do ângulo que eu o atingisse. Sua mulher gritando desesperadamente, dizendo impropérios. Eu não poderia me justificar, porque mais uma vez não entenderiam.

Se me deixassem ali, o que seria quase impossível, iria na direção das pessoas que comiam com sofreguidão. Me aproximaria da mesa, comprida e enorme, e num puxão violento, arrastaria a toalha da mesa, vindo junto todos os pratos, louças e toda a comida que estava em cima. Tudo se espatifaria ao chão.

Algumas coisas cairiam no colo das pessoas. Finalmente, após terminado tudo, restariam algumas crianças de colo chorando histéricas, ensopadas por copos de vinho e restos de comida que entornariam sobre elas.

Mulheres com as mãos no peito, assustadas. Alguns homens dirigir-se-iam a mim e novamente me agarrariam, sem saber realmente o que fazer. Me chacoalhariam. Me empurrariam. Alguns titubeando nas suas atitudes, porque ninguém em sã consciência faria o que fiz, assim sem mais nem menos.

Uns ririam. Primeiro porque não estavam naquela mesa, e segundo porque as crianças maiores começariam a chutar os frangos assados que cairiam no chão. As pessoas escorregariam na gelatina de morango. Diriam que estavam chamando a polícia. Me colocariam sentado em uma cadeira no escritório e me trancariam.

Eu pegaria uma televisão que estava lá e a arremessaria contra a janela. Eles ouvindo o barulho, não se arriscariam em abrir a porta, pois pensariam que eu estava louco.

Me deixariam por ali mesmo até a chegada da polícia. Eu continuaria a quebrar todo o escritório, não deixando nada inteiro

Estando no terceiro andar, e com a janela de vidro quebrada, aproveitaria e jogaria uma cadeira, um computador e o armário de aço lá embaixo.

Entrariam então quatro policiais que me agarrariam violentamente, algemando minha mãos, me fazendo deitar no chão.

Seguiriam com a viatura para o distrito policial e me deixariam em uma cela isolada, por 6 horas, até que fosse levado para falar com o delegado.

O delegado seria um homem forte com um enorme bigode preto. Ficaria imaginando se eu pudesse puxar seu bigode até quase arranca-lo. Mas estaria com os pés e as mãos algemados.

Ele me perguntaria se eu era louco. Eu diria que não. Que não havia feito nada. Ele olharia para os agentes em volta, e balançando a cabeça, diria que tinha de pedir uma transferência para o manicômio judicial. Eu diria novamente que não era louco. Ele diria que eu era o cara mais doido que ele já tinha visto.

Que eu havia derrubado uma idosa com uma rasteira, logo depois agredido um senhor na cabeça com uma pasta (inclusive teria sido levado para o hospital com suspeita de traumatismo craniano), e antes que pudessem me agarrar, derrubado toda a comida dos convidados no chão quando puxei a toalha da mesa, queimando várias pessoas com a comida que foi derramada sobre elas (uma menina de 7 anos teve queimaduras de primeiro grau com a sopa incandescente).

Depois de conseguirem me imobilizar, fui trancado no escritório do restaurante, onde destruí tudo, jogando pela janela varias coisas. 3 pessoas se feriram com os cacos, e o armário de aço caiu em cima de um porsche. Ele diria que eu estava fodido. Que a maioria das pessoas naquele jantar eram políticos importantes. Eu diria que não tinha feito nada disso. Só pensado. Que sempre fazia isso para me distrair. Não tinha saído de trás do balcão.

Os policiais começariam a rir, eu também. Ele me perguntaria se queria dar algum telefonema. Eu diria que não. Morava sozinho depois que meus pais morreram, após rolarem da escada de casa. Ele diria que já desconfiava como isso teria acontecido. Eu sorriria. Eles não.

Me levariam de volta para a cela, e no outro dia chegariam uns caras vestidos de branco, me colorariam uma camisa de força e me levariam para o manicômio.

Ficaria só em uma jaula fria e úmida, e nunca receberia visitas. Comeria os mosquitos que com freqüência apareceriam por lá. Passaria grande parte do tempo imaginando o que aconteceria se eu conseguisse de alguma forma amarrar alguma coisa no pescoço e me dependurar. Eles chegariam e me veriam ali, todo roxo. Não entenderiam como eu havia arranjado um lençol.

Me colocariam em uma mesa. Amarrariam uma etiqueta no meu pé direito, para depois me guardarem numa gaveta frigorífica.

Que aconteceria se de repente eu levantasse da mesa? Imagine os olhos de terror das pessoas em volta. Alguns correriam de medo ao me ver com aquele pescoço afinado por causa do aperto do lençol. Outros mais corajosos pegariam o extintor na parede e bateriam na minha cabeça até que eu não reagisse mais.

Acho que preciso mesmo consultar um psicólogo. Essa minha mania de ficar imaginando as coisas.

Agora essa impressão de estar morto. De não sentir o coração bater. De não poder me mover.

Semana que vem vou ver isso. Nossa que frio. Deve ser o stress.

FIM

Márcio José
Enviado por Márcio José em 21/11/2005
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