A Colcha Amarela

Clarissa abriu a porta do quarto e deu de cara com a colcha amarela sob a cama. Naquele momento, sentiu seus olhos encherem de água. Um bolo na garganta se formou. Aquela dor no peito, bem lá dentro, forte, intempestiva, cortando a alma com o fio de navalha. Não havia o que fazer. Ela já não estava mais ali, sentada ou olhando pela janela, com os cotovelos fincados na almofadinha que ficava no parapeito, observando o sobe e desce da rua, as conversas do dia a dia. E a cadeira de balanço estava vazia. Era como se o movimento daquele balanço, não pudesse nunca mais ser feito. Naquele momento, Clarissa, num impulso, sentou na cadeira. Fechou os olhos e como num sonho, começou a sentir todos os cheiros da cozinha; o feijão no fogo, a linguiça pururuca na frigideira, o café no coador de pano, os bombocados chegando. Não havia doce melhor do que os bombocados, com as casquinhas torradinhas por cima. Vó Benedita tirava as moedas do bolso da saia, passava a mão no lenço da cabeça e dizia:

- Clarissa, vai na padaria de cima e traz os bombocados e o pão de torresmo!!

Clarissa ia subindo a rua. Andando pelos “ desenhinhos” que a calçada tinha. Sentia o vento frio, o ar gelado batendo no rosto contrastando com o céu azul. O sol esquentando devagarinho. As árvores da praça balançando como se quisessem dizer alguma coisa.

Muitas vezes, na hora do almoço, vó Benedita chamava Clarissa lá da cozinha. Pedia para que fosse na casa da Dona Nica, buscar um maço de couves ou cebolinha para botar no tempero. Dona Nica falava, falava, falava... mandava Clarissa entrar e ir na hortinha do quintal. Enquanto pegava as couves e a cebolinha, Dona Nica contava das ervas que tinha plantado, do almeirão, da chicória, da alface. Clarissa sentava na beirada da horta e ficava procurando minhocas no solo úmido, sentindo o cheirinho da terra molhada que tinha aos montes.

Do lado da hortinha havia as roseiras. Ah! Aquelas roseiras, lindas, bem cuidadas. Vermelhas, brancas, amarelas e daquela cor de rosa antigo, que parecia sair de um filme dos anos 20. Vó Benedita também adorava as rosas. Clarissa se perdia nas roseiras, olhando, contemplando. Os espinhos todos bem feitinhos, organizados em um zigue-zague... dona Nica, sem perguntar, chegava com uma tesoura e apanhava duas. As vezes amarelas, vermelhas, e quase sempre as de cor rosa antigo. Clarissa chegava em casa com a couve, a cebolinha e as rosas.

Quando a noite aparecia, lá pelas sete e meia, Dona Nica subia a rua lateral com sua filha Antônia e batia palmas no portãozinho que sempre estava destrancado. Vó Benedita gritava um “ já vou” lá da sala, e minutos depois, saia com as cadeiras, para sentarem todas na areazinha cheia de samambaias, que dava para a rua. Ali elas ficavam conversando sobre tudo, tomavam um cafezinho, comiam uma broa de milho e passavam aquelas horinhas. Clarissa ficava sentada na calçada , brincando com a criançada que aparecia. Os joelhos viviam ralados... todo mundo também ficava ali tentando adivinhar se alguém que saía do “ Barzão” da esquina, na outra ponta, ia virar lobisomem quando descesse a rua escura que dava pro lado do cemitério ( as apostas eram sempre altas para o Necão da borracharia). A noite, ninguém andava pela calçada, só pelo meio da rua. Era uma das maneiras que diziam, para conseguir escapulir do lobisomem, caso um aparecesse. Mas agora, tudo aquilo só estava guardado no coração e na memória de Clarissa, naquela cadeira de balanço.

Clarissa abriu os olhos e viu a colcha amarela na cama da avó. Não perguntou nada para ninguém. Tirou a colcha, dobrou, enfiou dentro da mala e trouxe para casa. Aquela colcha amarela na sua cama, seria a ponte entre o sonho e a memória, entre a rosa e a vó Benedita.

Yurika
Enviado por Yurika em 05/01/2022
Reeditado em 06/01/2022
Código do texto: T7422650
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