Caminhos
Foi um dia movimentado na empresa. Samantha ia e vinha há dez anos pelos corredores afora. No início teve dificuldades em aceitar trabalhar de salto alto. Mas depois se acostumou e gostou como sua postura havia melhorado. Sentia-se bonita. Exibia sempre um sorriso delicado a clientela. Possuía uma mesa própria onde havia um computador e vários formulários. Era uma empresa no ramo do vestuário. Depois de ter passado por vários empregos, finalmente Samantha sentiu-se realizada, gostava verdadeiramente daquele emprego. Jamais passava em sua cabeça que um dia poderia vir a ser demitida. Primeiro, era uma empresa sólida e depois era uma funcionária exemplar, então sempre se via ali até sua aposentadoria. Enfim o emprego perfeito.
Naquela quinta-feira ao final do expediente chegou em seu apartamento e não encontrou os chinelos que sempre ficavam à porta. Será que Willoughby, seu cãozinho, havia carregado seus chinelos? Não houve jeito, ela que detestava colocar os pés no chão, teve que entrar descalça.
A princípio sentiu um certo desconforto, mas logo estaria calçada com seus confortáveis chinelos. Brincou com o cãozinho que veio recebê-la exultante. Depois andou por todo apartamento até que tropeçou na ponta do tapete que estava virado para cima. Pisou novamente no ladrilho frio e em seguida voltou ao tapete onde sentiu a maciez da tapeçaria. Não procurou mais se calçar, aquele contato de seus pés com o ladrilho e o tapete fizera com que se sentisse diferente. Notou a diferença entre as texturas. E como se descobrisse um mundo novo foi até a varanda onde o sol ainda incidia e pisou firme no novo ambiente. Mas voltou correndo ao constatar o calor absorvido pelo piso naquela hora do dia, queimara a sola do pé. Voltou à porta de entrada e observou os sapatos de salto alto e depois olhou para os pés livres, observou um lascado no esmalte do dedo médio. Sentiu-se incomodada com aquele detalhe. Voltou até o quarto e buscou pelo vidro de esmalte. Procurou a cor que havia nos pés, remexeu a necessaire e encontrou-o. Deixou-o cair, até que o frasco rolou para debaixo da cama. Agachou-se para apanhá-lo e encontrou os chinelos. Decidiu não calçá-los. Foi até a cama e retocou a unha lascada. Pousou novamente os pés no chão e pela primeira vez prestou atenção no piso do apartamento. Ficou encantada com a beleza do ladrilho vintage. Os desenhos eram muito belos e aí notou que a pintura das paredes destoavam por completo do piso. Decidiu que faria uma nova pintura no apartamento. Até a hora de dormir não se lembrou mais de se calçar. Foi para a cama às dez da noite e às sete da manhã já estava de pé. Como era sábado e não trabalhava teve a ideia de ir visitar a tia Alzira que não via há muito tempo. Essa tia morava em um sítio e Samantha desejou intensamente ir até lá subir no pé de jabuticaba descalça, como já fizera muitos anos atrás.
Sentiu um pesar de ter que calçar sapatos para ir até lá. Mas assim que chegou arrancou-os e deixou os pés livres, pisando na grama. Não se lembrava de quanto era maravilhoso pisar na relva macia. Correu até a casa feliz da vida. Abraçou os tios e esqueceu os sapatos a um canto da varanda. Entrou e sentiu a memória afetiva de quando comia os bolinhos de chuva. Escutou o barulho das águas do ribeirão, correu até lá e mergulhou os pés na água fria. Olhou para o azul do céu, tão mais azul do que o céu da cidade. E aí teve o maior desejo de sua vida, sentir o pés descalços sobre à terra. Andou, correu, rodopiou e se viu tão feliz como nunca. Imediatamente se lembrou de pedir sua demissão.