Absurdo
“ A seta já contém o alvo mas só percorre a seta aquele que lhe conhece o alvo. Assim é de olhos fechados que o grande atirador alveja.”
André Breton
Quando o sono nos chega damos também repouso à essência vigilante que, sempre racional e muitas vezes atenta, nos fiscaliza os actos, os ditos, a expressão do que pensamos. É uma festa discreta, com raríssimos sons, menos palavras, discurso que, se houver, é surreal. O cérebro dorme, ausenta-se de rigores (“Ó Maria diz aquela cotovia que fale mais devagar/ não vá o João acordar”), liberta-nos de deveres, todos os deveres, para exibir na intimidade o ser único e imperfeito, somatório de todas as perfeições, que nos dão vez e brilho.
Um dia, farta de mourejar, a formiga pediu conselhos à cigarra. Vida linda, vida boa, vida a sério e à toa, levada pela guitarra, ensaiada nos bastidores do frio assim a levou a mestra à apoteose da liberdade.
A formiga, para quem tudo era novidade, cantou sem ter voz, dançou mesmo com a entorse no calcanhar e, quando a luzinha irritante da razão a perturbou, deu consigo num palco iluminado por focos intensos a dançar merengue. - Que se lixe o inverno, disse!