Levando porrada

“Tudo se afasta nessa correnteza

onde uma flor, às vezes, fica presa

e um claro riso sobre as águas dança!”

Mário Quintana

Éramos dois Frankensteins na fila do SUS. Tinham nos surrado de tantas formas, e por diversas razões, que achei que era uma boa ideia se pudéssemos lamber nossas feridas como cães abandonados.

Perguntei seu nome. Ela me disse que se chamava Diana. Era garçonete de uma famosa boate do centro e uma ex-colega, com inveja, tentou desfigurar o seu rosto. O rosto estava bem sofrido, mas o corpo tinha traquejo.

A moça perguntou o que eu fazia e quando eu disse, o olho roxo dela e os lábios inchados se entreabriram dolorosamente. Esforcei-me para levantar o braço dolorido e puxei a camisa para mostrar o hematoma nas costelas, mas ela cobriu a boca com o celular e deu um passo para trás.

Éramos os últimos da fila. Talvez fôssemos os últimos em tudo. Pelo menos eu era.

Diana quis saber, em detalhes, como eu ganhava a vida. Eu disse que era possesso de igreja, trabalhava cinco vezes por semana levando safanões, tapas e até mesmo socos em algumas igrejas evangélicas da periferia. Mostrei o braço como resultado da última surra que levei de um pastor. Ela ouvia enrugando a testa e franzindo o nariz.

Disse que gostava de trabalhar se divertindo ou se divertir trabalhando. Isso me deixou confuso porque eu sempre trabalhei sofrendo e, por último, apanhando.

Só de pensar que ainda tinha mais duas igrejas para ir no final de semana, meu estômago doía. Se ao menos pagassem bem, mas os pastores todos combinaram um preço único. Dessa forma eu apanhava em uma igreja lotada o mesmo tanto que apanhava em uma igreja vazia. Parece que descontavam em mim a raiva que tinham da presença pecadora dos fiéis ou da ausência deles.

Como eu fui atendido primeiro, fiquei esperando por ela lá fora. Quinze minutos depois Diana saiu. Caminhava devagar e olhava para o chão. Trazia um band aid nos lábios e uma gaze com esparadrapo no olho. Admirou-se de me ver ali de pé, segurando o braço na tipoia. Estava aflita, me disse, pois tinha de procurar um trabalho. Eu garanti que seria fácil para uma mulher bonita como ela conseguir um novo emprego.

Segundos depois, Diana fechou os olhos e balançou a cabeça tentando sorrir, claramente sentindo dor. Levou a mão a uma das orelhas e balançou o corpo como se fosse desmaiar. Corri para ela, espalmei minha mão em suas costas e com o braço dolorido amparei seu corpo logo abaixo dos seios para que ela não caísse para frente. Foi só um segundo, mas durou. Durou que doeu em outras partes do meu corpo quando ela pôs os dois braços ao redor do meu pescoço e descansou sua testa na minha.

Você é tão alto, Diana falou baixinho ao meu ouvido. Vamos andando. Eu tentei protestar dizendo que era melhor chamar um táxi. Ela disse que ia ficar bem e que era bom eu guardar o dinheiro para tomarmos uns tragos no bar mais próximo. Eu sorri por dentro.

Caminhamos devagar até o boteco da esquina. Enquanto aguardávamos a cerveja, pedi a ela que acendesse dois cigarros para nós. Diana me olhou sem piscar, acendeu apenas um e tragou. Depois o levou até a minha boca para que eu tragasse. Nesse momento, pressenti que poderíamos ficar assim para sempre, se existisse esse tal de para sempre, para pessoas como nós.

Logo não existiam mais as cervejas e os cigarros que consumimos. Eram apenas fumaças e líquidos dentro e ao redor de nós. O tempo parava e acelerava no exato momento em que sua unha pintada tocava o tampo da mesa. Para mim era um deleite. Para ela não sei, parecia ansiedade. Até que o telefone de Diana tocou. Me disse que era o patrão e fez sinal de silêncio com os dedos. Eu a olhava com cuidado, capturando o olho bom dela que crescia, se expandia até ficar maior que o bar.

Por fim, desligou e disse que o patrão demitiu a outra, ela já poderia voltar ao trabalho. Balancei a cabeça e a parabenizei por garantir o emprego.

Eu a vi sorrindo pela primeira vez e vi também quando ela pegou um cartão, enfeitado, da boate chique e pôs sobre a mesa. Esticou o braço e apertou o meu ombro, disse que foi um prazer. Levantou-se. Não deixe de me visitar, falou por sobre o ombro, enquanto se dirigia para o calçadão.

Fiquei sozinho com as garrafas vazias e a cabeça cheia de pensamentos mórbidos. Eu teria que levar mais duas boas surras se quisesse vê-la novamente.

make
Enviado por make em 27/12/2021
Reeditado em 25/03/2022
Código do texto: T7416234
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